Janeiro. Mês de desmontar a árvore de Natal, de fingir que está cumprindo as promessas de ano novo, e mês de assistir às minisséries da TV Globo. Porque já virou tradição: de uns anos para cá, a Globo começou com o costume de lançar minisséries no começo do ano. Mas as minisséries globais não vêm de um passado tão recente assim. Em 1966, quando a primeira novela da televisão foi ao ar, o sucesso foi tanto que o costume se consolidou, dando origem não só a uma infinidade de outras novelas daí por diante, mas também a séries, às vezes tão ou mais longas que novelas, mas feitas em formato diferente. Ultimamente, inspirada no sucesso das sitcoms no exterior, a Globo está investindo cada vez mais nesse formato, quase sempre bem-humorado, mas nem sempre bem-sucedido (basta ver a safra que ela colocou no ar no segundo semestre do ano passado, e que não se decidiram por quanto tempo ficariam no ar: Os Aspones, o tal do Programa Novo, Quem vai Ficar com Mário?…).
Mas também surgiram aí nesse meio as minisséries: com uma produção mais caprichada (e, portanto, mais cara), com uma duração de cerca de um mês. E dizer que a produção é mais cara não é exagero: o custo médio, nessas minisséries, é de 150 mil reais por capítulo. A primeira minissérie exibida pelo canal foi Lampião e Maria Bonita, de 1982 (que foi a primeira série latino-americana a receber a medalha de ouro do New York Festival de Cinema e Televisão). Até hoje, foram feitas no total 58 minisséries, sem muita “poupação de despesas”: duas delas (A Invenção do Brasil e Auto da Compadecida) já viraram filmes bacanas, e, aos poucos, todas (principalmente as mais recentes) estão ganhando as lojas, em boxes de DVDs.
Esse “exagero” todo tem uma explicação: essas minisséries levam tempo para serem produzidas, com um bom investimento e muita pesquisa. A Globo tem, hoje, seis estúdios com cerca de mil metros quadrados, cidades cenográficas, e um acervo enorme de figurinos e cenários. Às vezes, dessa combinação saem coisas boas e diferentes (principalmente quando têm o dedinho do Guel Arraes na produção) – mas, também, isso não é regra geral: Mad Maria, por exemplo, que está no ar agora, é bem aquela coisa melodramática e com closes de câmeras focalizando cada poro do ator principal, típica de novela.
Hoje é Dia de Maria, que estreou no dia 11 de janeiro e teve oito episódios, foi uma minissérie que saiu fora dos padrões novelescos de outras minis da Globo, e inovou em vários sentidos. Antes que isso pareça conversa daquelas tias colunistas que adoram falar de inovações, porque está na moda dizer isso, eu explico.
Um baile feito com a técnica pixilation? Teve isso em “Dia de Maria”. Cenários bem diferentes do convencional? Confere. Marionetes de madeira? Sim sim. Atores brasileiros cantando músicas antigas? Também. Quem não conseguiu enfrentar a chata da Maria do Carmo e o deprimente Big Brother durante duas semanas seguidas para conseguir ver afinal que “Maria” e que “Dia” eram esses, acabou perdendo uma das melhores microsséries feita pela TV Globo até agora. Pois bem. Quem não teve essa oportunidade, vai poder conferir a série quando o DVD for lançado (já no segundo semestre desse ano), mas pode aprender um pouco mais sobre ela, enquanto o box não vem.
:: DIA DE MARIA?
“Hoje é Dia de Maria” é baseado em uma pequena fábula escrita pelo dramaturgo santista Carlos Alberto Soffredini. O diretor, Luiz Fernando Carvalho, já tinha pensado em transformar esse texto em uma minissérie, em 1995, mas o projeto foi abandonado por ser considerado muito caro. Agora, dez anos mais tarde, e quatro anos depois da morte do autor Alberto Soffedini, “Hoje é Dia de Maria” voltou, como um dos primeiros especiais em comemoração aos 40 anos da TV Globo. O dramaturgo Luís Alberto Abreu e o próprio diretor (Luiz Fernando Carvalho, responsável por sucessos como a minissérie Os Maias e a novela O Rei do Gado), então, se uniram para transformar o original em um roteiro para uma microssérie de oito capítulos.
Não é à toa que metade das pessoas que conheço e viram alguns capítulos da série disseram “Ai, mas eu não entendi nada. É muito bagunçado, muita fantasia…”. E isso é claro. O que o roteiro de “Hoje é Dia de Maria” quis fazer foi exatamente isso: misturar folclore e cultura popular brasileira, com contos de fada e fábulas (nacionais ou não), em uma história de fantasia… direcionada ao público adulto. Uma bagunça, não?
A maquiagem e a linguagem usada na microssérie foram teatrais, e, por isso, as falas dos personagens eram bem elaboradas, com essas coisas típicas de falas de teatro: rimas, poesia e metáforas. Para melhorar, vez por outra os atores começavam a cantar – claro que não transformando tudo em um espetáculo da Broadway, mas cantavam, sim, músicas do folclore, como aquela do “Alecrim dourado que nasceu no campo sem ser semeado”. Para isso, os atores participaram de oficinas e workshops de dança, canto, prosódia e expressão corporal. Não vejo a hora de lançarem a trilha sonora, para poder ouvir novamente as músicas bacaninhas, tanto as instrumentais, quanto as cantadas. Eu ponho cada vez mais fé nas trilhas sonoras brasileiras. Alguém já ouviu alguma música do Castelo Rá Tim Bum – O Filme? Vale a pena.
Para finalizar, os efeitos utilizados na microssérie foram dos mais criativos. Para criar a atmosfera de fantasia, a filmagem não aconteceu em um estúdio normal, e sim em um domo (uma construção circular, fazendo com que o cenário tivesse 360°) de 27 metros de altura por 54 de diâmetro – uma adaptação do palco do Rock In Rio, inteiramente pintado à mão e montado em um solo natural. Por isso, durante toda a microssérie, o que se vê não é um céu normal, e sim uma pintura. Interagindo com os atores, aparecem marionetes de madeira feitas pelo Giramundo (um grupo de artistas plásticos de Minas), personagens com máscaras e animações.
:: ERA UMA VEZ…
Antes de mais nada, não leia isso aqui se não quiser saber a história da microssérie, ou vai receber uma chuvarada de spoilers na cabeça. Maria (Carolina Oliveira, uma gracinha de menina, que foi selecionada na última hora entre mais de duas mil crianças, e faz seu primeiro trabalho como atriz em “Dia de Maria”) vive sozinha com o Pai (Osmar Prado) – porque seus irmãos se “perderam na vida”, indo trabalhar e deixando a família e a seca para trás, e a Mãe (Juliana Carneiro da Cunha), morreu de uma “doença ruim”. Desesperado com essa nova condição, o pai de Maria se entrega à bebida, e acaba maltratando a filha por causa disso. Logo, arranja casamento com a Madrasta (Fernanda Montenegro), que, com a primeira ausência do novo marido, mostra a que veio: também maltrata Maria, e faz igual a madrasta da fábula que deu origem à música “Minha mãe me penteou, minha madrasta me enterrou, pelos figos da figueira que o Sabiá beliscou”.
O pai de Maria volta, e consegue salvar a filha das malvadezas da madrasta. Cansada dessa vida, Maria faz uma trouxa, pega a chave que sua mãe lhe entregou antes de morrer, e vai andar pelo mundo afora, buscando o “seu tesouro e as franjas do mar”. Logo depois, seu pai resolve ir atrás dela, e a madrasta, interessada no tal de tesouro, também segue logo atrás. É aí que Maria começa a encontrar personagens diferentes pelo caminho, no melhor estilo O Mágico de Oz: encontra personagens alegóricos (“personagens alegóricos” são aqueles que simbolizam alguma coisa, como, por exemplo, um mendigo que representa a falta de esperança), e, como em todas histórias do gênero, ela aprende coisas com eles, e eles com ela.
Cruzam o seu caminho figuras como o Maltrapilho, o Homem de Olhar Triste, os Meninos Carvoeiros (uma crítica ao trabalho infantil), os Executivos (Charles Fricks e Leandro Castilho, que parecem bonecos e são animados em pixilation, espécie de stop-motion com atores reais – essa técnica também é utilizada mais para a frente, no Baile do Príncipe). Maria também encontra um novo amigo, o Zé Cangaia (Gero Camilo), e, com ele, acaba se envolvendo com o pior indivíduo que poderiam encontrar: o Asmodeu (Stênio Garcia, em um ótimo trabalho), que é ninguém menos que o próprio coisa-ruim em carne e osso. A esperteza de Maria desperta a raiva do Asmodeu, que, daí em diante, começa a persegui-la, aparecendo para ela em outras formas (com outras personalidades, e interpretado por outros atores: o Asmodeu sátiro, o Brincante, Mágico, Bonito, Velho e o Poeta).
A primeira maldade que ele faz com Maria é transformá-la em adulta da noite para o dia (em um dos momentos mais “metafóricos” e geniais da microssérie). Então, a Maria adulta (Letícia Sabatella) vê que, além da sua infância, também perdeu sua preciosa chave e, se não bastasse, reencontra a madrasta e sua filha estranha, a Joaninha (Rafaella Oliveira) também mais velhas. É aí que entra a paródia à história da Cinderela, quando ela encontra um vilarejo que aguarda o retorno de um Príncipe (Rodrigo Rubik) – junto à chegada de Maria, coincidentemente, o Príncipe retorna, saltitante (literalmente), e resolve dar um baile para encontrar uma esposa para ele. Um Mascate (Rodolfo Vaz) vende uma roupa para que a moça vá ao baile, mas lembrando: o encanto acabará à meia noite. Daí se sucedem a já conhecida fuga, a perda do sapatinho e o reencontro do Príncipe com ela. Com a diferença de que Maria não está muito feliz por se casar com ele, e está mais preocupada com um Pássaro Misterioso (mais um dos bonecos do Giramundo) que a seguia desde o início da microssérie.
Maria vai atrás do pássaro, que está ferido, no momento em que este se transforma em um homem, o Amado (Rodrigo Santoro, que está sempre molhado nesse papel. É bizarro). Daí, claro, os dois se apaixonam, e tudo estaria muito bem, não fosse o fato de, ao nascer do sol, o Amado ter que virar um pássaro novamente. Enquanto continua com seu amor pelo pássaro encantado, Maria se encontra com uma dupla de saltimbancos: Quirino (Daniel de Oliveira, que fez o Cazuza) e Rosa (Inês Peixoto). Quirino se apaixona por ela, e, tomado pelo ciúmes, pensa em dar cabo do Amado de Maria, incitado pelo Asmodeu, que ainda não desistiu de acabar com a vida da protagonista.
Aí se sucedem vários causos: Maria reencontra seu pai, Quirino se arrepende, e Asmodeu manda neve no Sertão, para matar Amado. Maria consegue ir contra todas as maldições jogadas pelo diabo, e faz com que seu amor reviva. É aí que a maior reviravolta da microssérie acontece: quando o casal está no auge dos seus amores, o Asmodeus transforma Maria em criança novamente… E… Apesar de já ter contado muita coisa da trama, o final verdadeiro eu ainda acho maldade contar. 🙂
Investir na valorização da cultura popular é bom. Fazer isso com criatividade é melhor ainda. Agora, é esperar para que a Globo faça isso com uma certa regularidade.
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