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Quando surgiu nas revistas do Aranha em 1964, ainda fruto da dupla Stan Lee e Steve Ditko, o caçador Sergei Kravinoff (que costuma atender pela alcunha de Kraven) era um personagem sem muito brilho. Aliás, ele era tão ridículo quanto a sua versão ultimate acabou se tornando: você consegue imaginar o quão bizarro é ver um adolescente trajado como uma aranha lutando contra um sujeito de tanga peluda e com uma pele de leão enrolada ao corpo? Não dava pra levar a sério.
Os anos passaram (e os péssimos roteiristas também), e Kraven acabou se tornando um personagem secundário, que nem o próprio aracnídeo levava muito a sério. Ledo engano, caro Parker. Em 1987, eis que o escritor J.M. de Matteis resolve deixar as piadas da Liga da Justiça América de lado para assumir um dos arcos de histórias mais sombrios da já complicada vida do Homem-Aranha: A Última Caçada de Kraven, que a Panini relança em edição encadernada nas bancas brasileiras.
Ainda trajando o uniforme negro, Parker tinha acabado de casar com Mary Jane…e também tinha, recentemente, recebido o baque da morte do amigo Ned Leeds, que ele também descobrira ser o Duende Macabro. Definitivamente, não era o momento mais fácil da vida do nosso herói. Pra complicar ainda mais as coisas, eis que Kraven resolve retomar a sua honra com sangue e, numa emboscada, derrota o herói sem qualquer esforço. Afinal, nunca que o sobrinho da Tia May dar o devido respeito àquele caçador metido a besta. Pois deveria. E esta lição, o Homem-Aranha carregou para o resto da vida.
Herdeiro de uma riquíssima família russa (como vamos descobrindo aos poucos durante o desenvolvimento da série), Kraven enterra Peter vivo…e assume a sua personalidade de Aranha. Não basta derrotar o inimigo, você tem que entrar na sua pele. E, acredite, este é só o começo. Para quem não leu, vou evitar contar maiores detalhes para não estragar a surpresa da coisa.
O traço orgânico de Mike Zeck dá a medida ideal para a loucura de Kraven, cujos sorrisos maquiavélicos se tornam tão assustadores que você chega a pensar: “Meu Deus, como eu podia achar este cara ridículo?”. É bem por aí mesmo. Em pleno contato com a sua besta interior, o caçador acaba se deparando ainda com o Ratus, aquele vilãozinho meia-boca que, depois de passar pelas páginas do Capitão América, acabou se tornando parte do elenco do Cabeça-de-Teia.
Até hoje, a saga repercute na vida do herói. Na ótima série Tormento (1990), por exemplo, Todd McFarlane faz repetidas menções ao sofrimento de Peter enquanto tentava abandonar sua prisão a sete palmos debaixo da terra. E o que é melhor: a mudança na abordagem de Kraven tornou-se tão respeitosa que nenhum argumentista que se seguiu a deMatteis teve coragem de mudá-la. Mesmo com a aparição dos dois estranhos filhos do caçador (desnecessários, por assim dizer), o personagem continua lá, no seu lugar de direito, com um fim respeitoso e merecido. A Marvel deveria aprender esta lição, aliás.
A Última Caçada de Kraven é a leitura ideal para quem sempre enxergou o Aranha como um herói cômico. Na verdade, o Homem-Aranha é um personagem humano. Arrisco dizer até que ele é o mais humano dos super-heróis. A Última Caçada de Kraven é justamente isso: a história de dois seres humanos, sendo que um deles chega ao limite de sua sanidade e resolve vencer o maior desafio de sua vida. E acaba conseguindo. O preço, no entanto, só Peter Parker pode dizer.
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