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Artigo adicionado em 11/12/2003, às 01:38

UMA VERDADEIRA LIÇÃO DE ANATOMIA
Dissecando a HQ “Asilo Arkham” Podem me chamar de louco (gostaram do trocadilho?), pois o que me proponho neste artigo é nada mais nada menos que a dissecação total de Asilo Arkham e, por essa via, a obtenção de ao menos um mero vislumbre do processo criativo pelo qual a mente alucinada de Grant Morrison […]

Por
Vidal


Podem me chamar de louco (gostaram do trocadilho?), pois o que me proponho neste artigo é nada mais nada menos que a dissecação total de Asilo Arkham e, por essa via, a obtenção de ao menos um mero vislumbre do processo criativo pelo qual a mente alucinada de Grant Morrison concebeu tal obra.

Muita pretensão? Talvez, mas não certamente maior do que a de Morrison e sua história, na qual ele afirma, para quem quiser ouvir ou para quem for capaz, que Batman, Coringa, Duas-Caras, Amadeus Arkham, Jesus Cristo, Lewis Carroll, Dave Mckean, Grant Morrison (ele mesmo!), eu, você, o Asilo Arkham e tudo mais no universo somos farinha do mesmo saco, um ser único, o Deus Uno das filosofias do oriente. Loucura? Talvez; mas, como diz Amadeus Arkham, “Tenho pena das pobres sombras confinadas na prisão euclidiana que é a sanidade” (no final explico essa referência e o que ela tem a ver com o círculo euclidiano clássico) ou, mais cabalmente, Jorge Luis Borges no conto O homem no umbral: “De um louco, para que a sabedoria de Deus falasse por sua boca e envergonhasse a soberba humana”.

Alguém aí também me achará ensandecido se eu afirmar que Asilo Arkham é o mais digno descendente nas letras modernas da Casa Verde de Machado de Assis? (Você que é nerd: pare de ler só gibis e tente o conto O Alienista desse autor, do qual acho interessante traçar um paralelo entre a irônica teoria de Machado, segundo a qual a perfeita sanidade seria a loucura, com a supersanidade que Morrison atribui ao Coringa.)

Só mais um adendo, a respeito do título deste artigo: trata-se de referência e homenagem à história clássica do Monstro do Pântano, escrita por Alan Moore (“Lição de Anatomia”, originalmente publicada em The Saga of The Swamp Thing nº 21 em fevereiro de 1984).

Apenas um lembrete: aqui, eu discorro sobre detalhes muito importantes da Graphic Novel. Sim, há os chamados spoilers. Quem ainda não leu essa obra-prima e não quer saber dos detalhes, sugiro que pare a leitura agora.

:: O DEUS DO LABIRINTO ESPECULAR

Para Morrison a realidade, assim como a história de Asilo Arkham, são parábolas meio que distorcidas. Compare a discriminação da palavra parábola no Aurélio com a seguinte fala do Chapeleiro Louco quanto à realidade:

Aurélio: “Narração alegórica na qual o conjunto de elementos evoca outra realidade de ordem superior.”
Chapeleiro: “A aparente desordem do universo é só uma ordem mais elevada, uma intrincada ordem além de nossa compreensão.”

O tema da história, alguns pensariam, seria a loucura e a sanidade, uma análise desses conceitos e das amorfas fronteiras que os separam, se é que há fronteiras.

Ledo engano.

Esse tema surge de uma análise superficial da história. Ele é, de fato, um dos temas, mas, assim como os demais subtemas, está mergulhado num tema mais amplo. Este é o tema filosófico da unidade, segundo o qual todos os personagens da história, e tudo mais no universo, são reflexos de um ser/entidade/divindade/seja-lá-o-que-for único, assim como todas as diferenças são meras ilusões: embora enxerguemos uma enorme barreira entre sanidade e insanidade, será que, levado tudo em consideração, ela realmente existe? Como no budismo, fazemos todos parte de uma única divindade; os indivíduos, objetos e idéias separados uns dos outros, ou seja, a realidade que enxergamos, são meras ilusões, ou maya.

Refletindo esse tema, é como se cada página da HQ fosse um espelho e refletisse de alguma forma as anteriores e posteriores. É possível identificar zilhões de paralelismos, o que Borges chamaria de “lei geral da simpatia”. Acredito que alguns, inclusive, possam ter escorregado inconscientemente da mente de Morrison para as páginas da história, de forma que até ao próprio autor sejam desconhecidos.

Numa cena, “Mad Dog” Hawkins corta os braços para sentir algo em sua percepção amortecida pela loucura; mais à frente, atormentado pelos demônios de seu conturbado id, Batman precisa atravessar a palma da mão com um pedaço de vidro para recobrar o controle, na segunda mais espetacular cena de tormento psicológico já sofrida/imposta a um personagem de HQs, sendo a primeira a sofrida pelo Monstro do Pântano nas implacáveis mãos de Alan Moore (na história que dá título a este artigo); ainda mais à frente Arkham arranca as próprias unhas na tentativa desesperada de retirar as fitas do espelho para “ver meu reflexo e provar que existo…”. A aparição recorrente de espelhos na história também faz parte desse complexo paralelismo, e acredito que reflita as aventuras de Alice in the Looking Mirrors Land (mais sobre paralelos com a obra de Lewis Carroll abaixo).

O morcego e o dragão aparecem na história como símbolos da loucura, do perigo em se olhar para dentro do abismo e descobrir que ele também olha dentro de você (Nietzsche). Como o morcego “real” foi a fonte da loucura da mãe de Arkham, é Batman, o homem morcego, quem supre o Asilo com a loucura advinda dos criminosos ensandecidos presos ali – e é este raciocínio que justifica as ações de Cavendish, enfim, toda a trama no plano das ações (a justificativa para a trama no plano idealista-temático-digressivo é basicamente o tema da história).

No nível da intertextualidade, tão cara a Borges, temos no mínimo os vários paralelismos com Alice no País das Maravilhas; por exemplo, com o Chapeleiro Louco no papel da Lagarta que, se a memória não me falha, fumava ópio sentada sobre um cogumelo (Arkham tem sua revelação ao ingerir o cogumelo amanita), e na fala final do Duas-Caras, que é exatamente a dita por Alice ao se revoltar contra os julgamentos insanos da Rainha de Copas, sem contar as citações à obra de Carroll que abrem e fecham a história (há paralelos com ‘Alice no País das Maravilhas’ também no filme Matrix que, a propósito, Morrison acusou de plagiar seu Os Invisíveis).

Esse paralelismo é uma técnica narrativa intrínseca à prosa, seja no romance, no conto ou de fato em qualquer outra forma, na prosa linear ou não-linear, como demonstra em caráter definitivo James Joyce em ‘Ulisses’ e, talvez de forma excessiva, em ‘Finnegan’s Wake’. Em ‘Asilo Arkham’, o próprio tema da história – a unidade final de tudo no universo – eleva tal técnica ao quadrado: neste caso, tudo espelha tudo e o autor pode mostrá-lo com liberdade total, especialmente graças ao ambiente não-linear ou necessariamente causal provido pela onipresente insanidade.

Mais dois exemplos: a Dra. Ruth Adams diz que “às vezes é preciso demolir para reconstruir”, palavras que ao cabo da história concretizam-se na cena em que Batman emprega o machado na destruição simbólica do Asilo; e não nos esqueçamos do peixe-palhaço de Arkham, capaz de mudar seu sexo de macho para fêmea (acentuando o tema de inexistência de identidade exata e individual).

Em diversos pontos da história, Morrison dá a entender, nem sempre de forma sutil, essa ligação atávica existente entre tudo: entre Arkham e Batman (especialmente no que diz respeito às suas mães), entre o Coringa, os peixes-palhaços e entre estes, quando vistos duplamente por Arkham sob o efeito alucinógeno do cogumelo, com o signo de Peixes, entre o significado deste com a “atribuição astrológica da carta da lua no tarô” e a lua maravilhosamente metaforizada pelo Duas-Caras (“ela [a lua] parece uma moeda gigante lançada por Deus! que caiu com o lado riscado pra cima. Assim ele fez o mundo.”), entre o dragão, o Crocodilo e o morcego, entre Gabriel, Jesus, Arkham, Batman, Odin e Attis… todas essas analogias e laços são fechados e explicados pelo monólogo do Chapeleiro louco, que também explicita o tema da história: “conhecê-las [as criancinhas] é conhecer a mim mesmo.

Garotinhas… ou Deus… às vezes acho que o asilo é uma cabeça. Estamos dentro de uma cabeça que nos sonha. Talvez seja a sua cabeça, Batman. Arkhan é um país dos espelhos. E nós somos você.” Ou seja: as garotinhas ou Deus, que é uma cabeça que nos sonha, a cabeça de Batman, que portanto é Deus e todos os demais personagens, pois “nós somos você”. Preciso dizer mais?

“A casa é uma organismo faminto por loucura. É o labirinto que sonha. E eu estou perdido.”
(Amadeus Arkham)

“Como em [Jorge Luis] Borges, os espelhamentos são múltiplos, e a face original, inapreensível, perdida no labirinto infindável dos reflexos sucessivos”.
(Davi Arrigucci Jr., Borges ou do conto filosófico.)

:: BATMAN E AMADEUS ARKHAM TRILHAM JUNTOS A MÍTICA JORNADA DO HERÓI

A história de Amadeus Arkham é absolutamente fascinante e trágica, destacando-se quatro momentos interligados em ciclo; veja:

Início: o estudo que Arkham faz da loucura de “Mad Dog” Hawkins lhe revela seu propósito de vida – tratar alienados.

Desenvolvimento: a cena em que a polícia solicita a ajuda de Arkham e este responde que “‘Mad Dog’ Hawkins não é problema seu. Não hoje”, seguida da cena em que encontra sua família esquartejada pelo lunático. (Morrison não explica em palavras o significado destas cenas, eu sim: desde o início Hawkins e demais lunáticos eram responsabilidade de Arkham – não se pode fugir a seu destino, não sem um preço. Também pode estar implícita aqui a ilusão de tempo: Arkham diz que Hawkins não é seu problema, “Não hoje”; estará Morrison refletindo mais uma vez o tema da unidade de tudo, segundo a qual todos os momentos se encontram no presente?)

Fim (o ciclo de fecha): Hawkins é capturado e ironicamente levado aos cuidados de Arkham em seu asilo, onde tudo começou. Aqui, o destino impôs a Arkham duas escolhas: se dominasse seu ódio pelo assassino de sua família, seguindo seu carma, que é tratar lunáticos, tudo acabaria bem (terminaria com sucesso sua jornada do herói; como ele mesmo diz: “não sou eu o herói, o homem do destino? Não enfrentei o Grande Dragão?”); mas, se sucumbisse ao ódio, fritando os miolos de Hawkins na mesa de eletrochoque, estaria desafiando seu destino – que era tratar dele, não matá-lo – e sofreria o que para ele seria a pior das consequências: enlouquecer.

A jornada de Batman nesta história deve ser vista, como tudo mais, em paralelo com a de Arkham; mas, diferente deste, Batman vence os obstáculos que lhe são impostos, renascendo, em linguagem mitológica, vitorioso de sua “descida ao inferno” – retorna com a dádiva da luz, ou do fogo -, o que em psicologia eqüivale a dizer enfrentar seus demônios internos (seu id) e, ao vencê-los, renascer um homem novo e evoluído. Nas palavras de Batman: “Sou mais forte do que eles. Do que este lugar. Eles precisam saber… Arkham tinha razão. Às vezes, é só a loucura que nos faz ser aquilo que somos. Ou talvez o destino”. Mais uma vez, Morrison não vê diferença em nada; para ele, loucura e destino podem se amalgamar – o tema da unidade de tudo.

Sabe-se que é parte essencial da Jornada do Herói o fato de este só dar o passo decisivo rumo aos grandes desafios de sua vida quando o destino o obriga a fazê-lo por meio de um acontecimento trágico, em outras palavras, a chacina da família Arkham/da família Wayne.

Morrison nos faz descobrir, mesmo que ele mesmo não saiba, que a história de Batman é um exemplo clássico da Jornada do Herói segundo Campbell e Joyce.

:: O DUAS-CARAS E O CORINGA DEFINITIVOS, ARTE, OUSADIA E PORQUE MORRISON PODE NÃO SER PERFEITO

Eu diria, sem muita chance de estar errado, que, entre outras coisas, Asilo Arkham é a história definitiva entre Batman e Duas-Caras, assim como A Piada Mortal o é para Batman e Coringa. Digo isso por diversos motivos, em especial pelo final da história (veja minha interpretação dessa cena adiante), além do fato de nesta história o Duas-Caras ser o personagem mais carismático, uma figura digna de pena, quase inocente, ao menos na superfície.

A arte de Dave Mckean é absolutamente brilhante, evocando o mais sombrio clima de loucura de que se tem notícia. O retrato do Coringa de Morrison (sua personalidade) e de Mckean (conjurado visualmente nas mais perfeitas expressões de insanidade da história da arte) é, ao meu ver, de-fi-ni-ti-vo. E acrescento: some a esse retrato a história criada para o vilão por Alam Moore em ‘A Piada Mortal’, e, aí sim, pode-se dizer com certeza que é impossível conjurar melhor versão. Ainda mais: acrescentemos de quebra a melhor morte já dada ao Coringa, a de Frank Miller em o Cavaleiro das Trevas – é ou não é a versão final do melhor vilão das HQs?

Quanto a ousadia… como os editores da DC deixaram escapar a escandalosa cena em que o Coringa sugere sem maiores rodeios uma relação homossexual entre o morcegão e o menino prodígio? (“Como está o menino prodígio? Já começou a se depilar?”), sem falar em algumas das cenas mais pesadas e chocantes desde que a linha Vertigo viu a luz do dia, como a da chacina da família Arkham (“Quase em vão, eu me indago onde está sua cabeça. Então, olho para a casa de bonecas. E a casa de bonecas… olha… para… mim.”).

Há, naturalmente, muitas cenas e conceitos brilhantes, das quais citaria a idéia de curar a obsessão do Duas-Caras pela dualidade substituindo-lhe a moeda por um dado e depois por um baralho de tarô, a cena em que Batman vê numa prancha de Rorschach o morcego (chupinhação ou citação a Watchmen?) e a cena de associação de palavras que se segue (“mãe – pérola; mão – revólver; arma – pai; pai – morte), além da sugestão, na cena clássica da morte dos pais de Bruce, implícita nas duras palavras da mãe, de que abandonará o menino ali se ele não se comportar como gente grande, logo concretizadas num tiro de revólver.

Mas Morrison pode não ser perfeito. Se eu não estiver errado, acredito que ele tenha cometido um deslize na cena em que Batman diz “ele teve o que mereceu”, referindo-se ao assassinato de Cavendish pelas mãos da Dra. Ruth Adans, mesmo no contexto em que a morte ocorreu (para salvar-lhe a vida).

:: ENCONTRANDO O REFLEXO FINAL, CONFESSANDO QUE ASILO ARKHAM É MELHOR DO QUE… BEM, LEIA E VOCÊ VAI DESCOBRIR, E EXPLICANDO QUE RAIOS O CÍRCULO EUCLIDIANO TEM A VER COM A HISTÓRIA

Mais uma coisa a considerar: no final da história, quando o Duas-Caras lança a moeda para decidir se Batman morre ou é libertado, Dave McKean não nos permite ver qual dos lados resultou; o Duas-Caras diz que Batman está livre; na penúltima página, Harvey aparece segurando a moeda, que tem virado para cima o lado riscado: indicação de que ele retribuiu ao Batman o favor de ter-lhe restituido a moeda, e consequentemente a sanidade. Desde o começo da história Batman apieda-se da condição do vilão, e no final, por seu ato misericordioso para com ele, recebe dele uma favor na mesma moeda (gostaram do trocadilho?).

Este é o reflexo final: Batman vê sua piedade refletida no Batman – por isso considero ‘Asilo Arkham’ a história definitiva entre Batman e este vilão.

Acredito também que a restauração da “ordem” à personalidade do Duas-Caras por parte do Batman forme um paralelismo ou alegoria tripla, na qual o herói restaura a “ordem” também à situação caótica do Asilo e, em última análise, à sua própria psiquê – um “final feliz” apesar de toda a loucura e morbidez desta obra-prima de Grant Morrison.

Por último – não acredito que vou escrever isso, mas é a pura verdade, fazer o quê? – escrevo estas dolorosas linhas: ainda não estou bem certo, mas penso que ‘Asilo Arkham’ é a melhor história já escrita para o Batman: empata com O Cavaleiro das Trevas, supera… ham, he… bem, lá vai – supera A Piada Mortal. Deussss…! Não acredito que eu escrevi isso… (se até o próprio Alan Moore não gosta muito da história…)

Ah! Já ia me esquecendo. Quanto à misteriosa definição de Amadeus Arkham, “Tenho pena das pobres sombras confinadas na prisão euclidiana que é a sanidade”, deixem-me esclarecer: o círculo euclidiano é uma figura geométrica unilateral, ou seja, que admite somente um lado; assim, segundo Arkham, a sanidade permite somente uma visão limitada, incompleta, unilateral da realidade, interpretação que parece correta segundo suas próximas palavras na história: “…eu sou aquilo que a loucura fez de mim. Inteiro. Completo. E livre, afinal” [grifo meu].


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