Certos filmes são capazes de marcar nossas vidas para sempre, por mais que sejam mal vistos pelos críticos ou tenham fracassado nas bilheterias. Inimigo Meu (Enemy Mine), produção de 1985, é o típico exemplo a esse respeito.
O filme, dirigido pelo alemão Wolfgang Petersen, o mesmo do clássico A História Sem Fim (1984), do fantástico Das Boot (1981) e do moderno Mar Em Fúria (2000), traz a parábola, em formato cinematográfico, dos inimigos diferentes que são forçados à convivência mútua em virtude das circunstâncias. O tema não é algo novo, basta que nos lembremos dum clássico dos anos sessenta, Inferno no Pacífico, estrelado por Lee Marvin e Toshiro Mifune.
O enredo, baseado no livro de Barry Longyear, se passa no Século XXIII, ocasião em que a Terra está em guerra contra o planeta Dracôn, pois ambas as raças desejam possuir e explorar sistemas estelares em comum. Negociações diplomáticas falharam e o combate espacial, a la Guerra nas Estrelas, tornou-se inevitável. Apesar de tudo, ambos os planetas dispunham de evoluções tecnológicas similares, fato que nivelou a batalha e, por conseguinte, não propiciou vantagem explícita a nenhum dos combatentes.
:: A PRIMEIRA PARTE
No início do filme, uma estação espacial da Terra é atacada pela esquadrilha de naves inimigas. Dezenas de pilotos são enviados ao combate, e um deles, Willis Davidge (interpretado por Dennis Quaid), depois de presenciar a destruição da nave de uma companheira, persegue o piloto opositor e responsável pelo disparo, o Drac Jeriba Shigan (interpretado pelo ganhador do Oscar de Ator Coadjuvante, Louis Gossett Jr.)
A ira cega de Davidge, movida pela vingança, leva sua nave a uma órbita muito próxima do desolado planeta Fyrine IV, um território inóspito e inexplorado, em perseguição ao piloto inimigo. Finalmente, ao atingir a nave Drac com um disparo laser, essa se choca contra a da Terra após a ejeção de um casulo-de-fuga alienígena. O terráqueo, então, perde o controle e ambos caem no planeta, devido à poderosa atração gravitacional emanada por aquele mundo.
Após a queda da nave, Davidge presencia a morte do jovem amigo co-piloto e, mais enfurecido do que nunca, parte em busca ao casulo caído a alguns quilômetros de distância dali. O humano nunca viu um Drac cara a cara, mas está louco para assassinar o oponente. Ao cair da noite ele chega aos destroços e as emoções começam a aflorar.
:: A SEGUNDA PARTE
Davidge e Jeriba finalmente se encontram, e, inicialmente, cada qual procura matar o inimigo. Após alguma ação, o Drac faz o terráqueo prisioneiro e chega até mesmo a, contrariado, alimentá-lo com um tipo nojento de lesma. Durante a noite, porém, uma chuva de meteoritos faz com que cada um corra para uma direção Jeriba liberta Davidge a contragosto por insistência do humano mas também os faz pensar sobre a única forma de sobrevivência naquele planeta extinto: o auxílio mútuo. É óbvio que a esperança nunca morre e, devido a ela, ambos sempre esperam, apesar da coexistência, por um possível resgate. O alienígena hermafrodita, cuja evolução aconteceu a partir dos répteis, foi apelidado de Jerry pelo terráqueo.
Ambos, então, passam a cooperar entre si e constroem um abrigo contra os tais meteoritos, notadamente uma das maiores ameaças do lugar. Aos poucos, como era de se esperar, os rivais passam a tomar conhecimento, cada qual, dos costumes e da vida um do outro. Jerry chega a salvar o humano numa oportunidade e, através do dia a dia, ambos se descobrem maiores do que a própria guerra. Davidge passa a aprender a língua Drac, que lhe é ensinada muito honrosamente por meio da leitura do Tallmman (um livro religioso de Dracôn). Desnecessário citar a grande amizade formada paulatinamente à base de confiança e companheirismo.
Por outro lado, o irrequieto terráqueo, cansado de esperar pelo improvável resgate, decide-se por sair pelo planeta a fim de procurar por supostas naves que povoam seus sonhos à noite. Problemas, contudo, estavam para acontecer, uma vez que o inverno rigoroso daquele hemisfério estava prestes a chegar.
:: A TERCEIRA PARTE
Jerry é, conforme dissemos, hermafrodita, e para a surpresa do amigo, estava grávido há algum tempo. Infelizmente, devido a um tombo que levou numa fuga e também por causa do frio intenso, algo deu errado durante a gestação. Por estar à beira da morte, resolveu dizer ao humano recém chegado de sua busca – que algo corria mal. O Drac implorou ao amigo para que levasse o futuro filho, Zammis, a um tipo de conselho de anciões, em Dracôn, onde a linhagem de Jeriba (os descendentes da criança, que remontam a inúmeras gerações) deveria ser recitada. Esse procedimento, além de fazer parte da cultura dos alienígenas, era honroso e necessário. O terráqueo, de fato, precisou prometer ao amigo para que ele morresse em paz. Mas isso não era tudo, porque Davidge precisaria abrir o corpo de Jerry, depois de morto, para remover o bebê, que corria risco de perder a vida.
Após a retirada da criança, o humano tornou-se o único pai, embora chamado de tio, que Zammis conheceu. Davidge contou histórias para o menino sobre o pai, sobre a cultura Drac e sobre outros humanos que vinham ao planeta de vez em quando, mineiros que escravizavam os alienígenas ao bel prazer e que foram descobertos pelo terráqueo durante a busca pelas tais naves vistas em sonhos. Apesar de todos os avisos e alertas, Zammis tornou-se curioso a fim de conhecer outros da espécie e, portanto, partiu em direção ao local proscrito. Ao chegar lá, foi pego pelo líder dos mineiros, Stubbs (interpretado por Brion James, de Blade Runner), e escravizado.
Davidge logo percebe o sumiço do menino e rapidamente corre em direção à nave dos mineiros para salvá-lo. Ao chegar lá, o humano mata o irmão de Stubbs numa tentativa de resgate, mas é baleado e largado à própria sorte. Milagrosamente, o corpo quase morto do terráqueo foi encontrado, tempos depois, por uma expedição militar e levado de volta à estação espacial.
A fim de cumprir o prometido, Davidge, já curado, ignorou ordens de superiores e partiu para o resgate do garoto. Nesse momento o espectador tem conhecimento de que o humano permaneceu naquele planeta por três anos.
A conclusão, muito bonita, leva qualquer coração mole às lágrimas.
:: PRODUÇÃO TURBULENTA
A produção de Inimigo Meu foi extremamente complicada. O diretor original do projeto, o britânico Richard Loncraine (de Ricardo III a versão com Ian McKellen), abandonou a película no início das filmagens, mas com algumas cenas previamente rodadas. Então, Wolfgang Petersen foi chamado, pois era sempre lembrado e ainda é – por causa de Das Boot, uma obra-prima do gênero de Guerra. Todas as cenas rodadas, incluindo-se nelas algumas seqüências do alienígena, foram dispensadas e precisaram ser refeitas por Petersen. O orçamento de Inimigo Meu, somente por causa desse detalhe, excedeu bastante o previsto.
:: BELEZA VISUAL
Apesar dos pesares, o designer de produção do filme, Rolf Zehetbauer (o mesmo de A História Sem Fim), criou cenários esplêndidos para o planeta Fyrine IV; a maioria deles, de forma inédita, construídos sobre palcos de shows de rock na Alemanha, no West German Studios. A retratação do mundo em que os protagonistas vivem é, de fato, espetacular. Apenas um detalhe que não passa despercebido se o filme for visto em DVD: nas cenas em que a nave de Davidge cai no planeta, percebe-se facilmente o uso de maquetes plásticas ao invés de efeitos visuais movidos inteiramente à computação gráfica. Esse detalhe não acontece, porém, durante as cenas de batalha espacial contidas no início.
O único dedo da Industrial Light & Magic em Inimigo Meu teve a ver com a constante chuva de meteoros e com a chamada Matte, técnica de pintura que deixa as paisagens e os cenários ainda mais realistas. As locações, situadas nas Ilhas Canárias, também não deixaram a desejar; ficou tudo muito bonito e bem feito. A fotografia, formidável, esteve a cargo do cinematógrafo Tony Imi, especialista em capturar detalhes e em produzir visuais acurados.
A concepção dos Dracs foi realizada pelo designer Chris Wallas, criador dos efeitos melequentos de A Mosca (de David Cronenberg) e também diretor da seqüência: A Mosca II. Apesar da aparência humanóide do alienígena, isto é, a semelhança para conosco, o visual dos Dracs não acabou artificial e nem desapontou. A maquiagem aplicada ao rosto de Louis Gossett Jr., fato impressionante, não o atrapalhou nas retratações das mais diversas emoções exigidas pelo personagem Jerry, embora apenas a boca e os olhos do ator estivessem de fora. Outro detalhe interessante é a respiração dos alienígenas, que pode ser percebida como um bombear numa pele localizada à altura das orelhas de um ser humano.
No tocante à trilha sonora, ela foi composta por Maurice Jarre (o pai de Jean-Michel) e possui ótimos momentos, especialmente representados pelo tema de Zammis. Mas não espere nada parecido com John Williams ou com James Horner; o trabalho ficou bem mais sutil.
A excelente atuação de Louis Gossett Jr., aliás, foi digna de outro Oscar. É impressionante como deu vida ao Drac e tornou-o convincente. Imaginem, caros leitores, um ator fazer tudo isso, mas somente dispondo da boca e dos olhos, porque o resto era coberto pela maquiagem. Dennis Quaid, por outro lado, não esteve em uma das melhores performances da carreira e, convenhamos, não acompanhou o trabalho de Gossett Jr. Quaid se deu muito bem, sim, nas cenas de ação e de luta, contudo, nas seqüências emotivas percebe-se que o ator perdeu-se um bocado.
:: MENSAGENS DE AMIZADE E DE AMOR
Inimigo Meu, apesar das críticas negativas sofridas no exterior, trata-se de um filme cuja mensagem é muito bela e comovente. Quando Jerry e Davidge se aceitam como verdadeiramente são, eles superam as diferenças sócio-culturais entre as espécies e, conforme citei no início deste artigo, tornam-se maiores do que qualquer guerra possa ser. A cena em que o humano pretende começar a aprender a língua Drac, comove o espectador, pois ele ganha de Jerry, seu mestre, uma versão do Tallmann, o livro sagrado de Dracôn. Davidge, por sua vez, afirma a também existência do Tallmann Terrestre (nossa bíblia, por exemplo), ao passo que o alienígena concorda com ele e cita a verdade universal por trás de todas as coisas. Os Dracs, importante ressaltar, têm a filosofia parecida com a Oriental, ou seja, estão mais ligados à mente do que ao corpo.
Há muitas cenas bonitas e de bom gosto, que não estão imbuídas de pieguice. Uma delas acontece quando o alienígena pede ao humano que lhe conte sobre os pais, sobre quem eram e o que faziam. Depois, Jerry recita ao terráqueo, como uma retribuição pela honra, toda a linhagem de Jeriba; processo que acontece na forma de uma canção emotiva (na língua Drac, é claro). Essa cantoria novamente pode ser ouvida no final do filme, quando Davidge e Zammis, em Dracôn, passam por uma cerimônia religiosa na qual o nome do humano é adicionado à linhagem do alienígena.
:: O DVD NACIONAL
A versão nacional em DVD está espetacular em Widescreen Anamórfico e possui a dublagem original da época, na qual o falecido Orlando Prado (voz da Lula Lelé e segunda voz do Salsicha) dublou o humano Davidge, e o lendário Rodney Gomes (voz de Cameron em Curtindo A Vida Adoidado) dublou Jerry. Nota dez para a dublagem, espetacular.
Quanto aos extras, uma pena que não haja tantos: há o trailer de cinema e algumas cenas estendidas. Somente isso.
Mas o DVD vale a pena, especialmente pela qualidade da transcrição do filme. A imagem está simplesmente fantástica. Infelizmente, Inimigo Meu está esgotado na maioria das lojas do ramo no Brasil.
Caro leitor d´A A ARCA, recomendo a você este título. Embora incompreendido, assim como Krull, Zardoz e tantos outros, Inimigo Meu é um dos filmes de ficção científica marcantes da década de oitenta e deve ser visto, principalmente, pelos fãs que gostem de bastante diálogo e de reflexão após o término dos créditos finais.
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