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Havia no céu uma gloriosa Lua cheia.
Amava a Lua, antes mesmo que a noite eterna se abatesse sobre a sua vida e a luz do sol lhe fosse negada para sempre. Agora, o luar era a única testemunha de todos os atos condenáveis que cometera em nome da insaciável sede de sangue que a torturava… Mas nada importava, a não ser essa luz suave, fraca e etérea da Lua perfeitamente cheia. Um olho a vigiar das alturas, a presença quase onisciente de um ente mais antigo do que a Humanidade. Um pedaço de si mesma, inalcançável e perdida, a permanecer só, no alto do céu negro noturno. Sensações de dor e tristeza que, em ondas suaves, vinham ao seu encontro a cada nova fase, como as fases da fêmea humana que um dia fora. Um turbilhão de sentimentos ambíguos de derrota, euforia e desespero na contínua contemplação da irmã celeste, tão viva, enquanto ela se tornava tão morta… Tinha vontade de chorar. Olhou para o belo menino moribundo, sua vítima por razões inexplicáveis. Não ia sugar o sangue quente desta vez, disso não tinha dúvidas. Mas para quê, então, o atacara? Algo, dentro dela, a fizera agir. Por quê?
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O keeleriano fitou o garoto ensangüentado à sua frente e sentiu-se impelido a explicar outra vez a razão de tê-lo abatido. Só mais alguns instantes e estaria tudo acabado. Sentiu a resposta excitada no corpo que o hospedava. Lembranças da fêmea humana, a quem antes pertencera o corpo hospedeiro, misturavam-se com os seus cálculos exatos. A interferência dos pensamentos da fêmea era sinal de que a resistência da espécime era acima do comum. Isso não era bom, precisava de precisão absoluta no salto. E havia outras urgências a considerar: os sinais vitais do garoto eram muito fracos, não havia mais atividade cerebral. Deveria se transferir logo ao novo corpo, antes que ele expirasse. Era uma sincronia tão fácil e corriqueira nos bons tempos, quando os humanos eram bilhões de seres superpovoando o seu planeta azul… Agora era diferente. A extinção da espécie homo sapiens estava sendo a sentença de sua própria extinção. Tinha uma única chance com o último sobrevivente da raça humana: o garoto agonizante. Se errasse o salto, ele, o keeleriano, morreria junto com a sua fêmea hospedeira doente.
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“Linda Lua refletida no olhar vítreo do garoto que sangra em minhas mãos. Morte a me dar vida… Morte sob a luz sem pecados de todo e para sempre Lua, Amém…” Cantigas suaves de ninar… Lembranças de sua infância, a saudade do toque quente de uma mão cheia de amor… Sim, ela já morrera, há muito tempo atrás. Então ele chegou. O invasor, o dominador. Tomou o seu corpo e a sua vida. E nunca mais ela sentira o calor. Apenas o frio da Morte. Por que prolongar esse longo morrer?
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Porque era PRECISO. Porque não importavam os milhares de anos em que ele, o último keeleriano, havia perambulado solitário e sem objetivo, alimentando-se do sangue para preservar a si e aos seus corpos hospedeiros. Porque, mesmo se fosse por apenas um segundo a mais, ainda desejava ardentemente viver. Olhou novamente para o garoto terrestre. Após a ocupação, este corpo também começaria a alimentar-se de sangue. E ia perambular pelas sombras, evitando a luz solar, sempre à procura de animais e seres com o líquido vital para servir-lhe de sustento. E havia uma esperança para ambos, keeleriano e humano. A reprodução post-mortem. Tinha que tentar. Não podia esperar mais. Abandonaria o corpo da fêmea e saltaria. Agora.
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Lua, de repente tão clara. Ela despertou de um longo sonho ruim. Na frente, nítido, o garoto revigorado. Que lhe diz coisas. Está sobre ela. Estão fazendo amor. Sua voz cálida roga para que ela se acalme, pois tudo vai ser natural, rápido e tranqüilo. Ele fala coisas que ela deseja ouvir, coisas que a fariam feliz. Descreve um novo mundo, onde eles, os últimos, seriam os primeiros de uma nova raça. Uma nova esperança que nasceria da raça de humanos. Eles. Juntos. Voz suave, um afeto tão intenso quanto estranho. Ele a beija e a abraça. Fala no seu ouvido sobre a Fecundação. Ela, mesmo morta, geraria um novo ser, uma mistura horrenda de um corpo morto e um parasita imortal… Que perseguiria todos os remanescentes da raça humana moribunda para se alimentar. Finalmente ela entendera. Com um sorriso nos lábios, abraçou o seu amante e algoz. E, com a mão, acionou a arma que havia restado no equipamento do garoto hospedeiro. Uma explosão. O seu corpo partindo-se em pedaços. E o silêncio. A sua alma, enfim, em paz.
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Sim, o silêncio. Não gostava do silêncio. Sentiu os vermes agindo nas entranhas, consumindo vorazmente os restos orgânicos do garoto humano, sua prisão. Podia ver, através dos olhos vazados e cobertos de moscas, o corpo desfigurado da sua antiga hospedeira, também morta. Não conseguia entender… Por que ela fizera isso? Como tivera a coragem de destruir a valiosa semente com a qual ele fecundara o seu ovário? Ele teria conseguido preservar o feto, fazê-lo nascer e frutificar, para hospedá-lo por mais uma geração. Tempo, a única coisa que pedia era tempo para procurar novos hospedeiros, novos humanóides… Agora era tarde. O sol, que jamais via, começava a nascer no horizonte, agora inóspito, do planeta azul. Mas para ele era o início do fim. Na inexplicável roda de tempo do Universo, uma raça antiga vivia o seu próprio crepúsculo.
Fim
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