Em 2003, a Wizards of the Coast lançou um concurso inusitado: os jogadores de D&D do mundo inteiro poderiam mandar seus cenários para a empresa e um deles seria escolhido como o novo mundo oficial de D&D. A Wizards recebeu mais de 100.000 cenários, de todos os gêneros, números e graus; mas quando o vencedor foi revelado o mercado de RPG ficou perplexo: Eberron não parecia com nada publicado até aquele momento. Os fãs de D20 estavam céticos com um mundo tão diferente e as primeiras reações, antes da publicação do primeiro livro de Eberron, foram de descrença. Porém, quando Eberron foi lançado as dúvidas viraram elogios e hoje o cenário colhe mais sucesso que o esperado pela própria Wizards. Mas por que? O que existe de tão diferente em Eberron?
Analisar apenas o conteúdo do livro básico de Eberron não é suficiente para entender o mundo das Dragonmarks (Marcas do Dragão) e compreender seu sucesso. Para isso, é necessário um estudo mais profundo, observando as grandes influências do RPG ao longo de sua história. O jogo que conhecemos hoje como RPG, nasceu inspirado por clássicos da fantasia, principalmente clássicos da língua inglesa: Tolkien (uma das grandes influências, mas não a maior), Michael Moorcock (autor de “Elric”), Fritz Leiber (Lamkhmar), Anderson, Howard. Elementos de todos esses clássicos são facilmente identificados nos primeiros cenários de RPG, seja de D&D ou outros sistemas. Mas, esses livros são antigos, alguns foram escritos há mais de 50 anos e apesar de serem livros sensacionais, refletiam pensamentos e idéias de outros tempos. Assim como os livros, os mundos inspirados nos clássicos acabam descrevendo pensamentos e conceitos de outras épocas. O que isso quer dizer?
No mundo de Tolkien, de longe o mais popular dos romances de fantasia, a magia é restrita e sutil. Magos são seres místicos e reclusos. A magia não está presente na vida da população, ou até mesmo na vida dos magos, ela só é usada nos momentos mais críticos. O mago é um personagem diferente dos outros (o chato que pensa saber tudo mas sempre esquece de memorizar duas Bolas de Fogo). Esse conceito do arcano foi transportado para os cenários de D&D, como Greyhawk e Forgotten, onde os grandes “juggernauts” do cenário são magos de níveis astronômicos. Nesses cenários, a magia era poderosa e cataclismática em tempos esquecidos, mas hoje é pequena e simples, algo distante do cotidiano. Essa idéia é um reflexo da evolução tecnológica do mundo real, e é a própria tecnologia que ajuda a entender as mudanças propostas em Eberron.
No passado, principalmente nos anos pós-Primeira e Segunda Guerra Mundial, quando a maioria dos clássicos de fantasia foi escrito, a tecnologia era algo quase alienígena. Somente aqueles que viviam nos grandes centros urbanos tinham acesso à tecnologia (como em Waterdeep ou a cidade de Greyhawk). Assim mesmo, o acesso era restrito, a tecnologia não estava dentro das casas. Um aparelho domêstico não mudava completamente os costumes de um povo. Ela estava lá, a tecnologia, mas era algo distante e perigoso. A Europa acabava de sair do maior conflito de sua história, onde a tecnologia se mostrou o maior dom e um pesadelo de proporções cataclismáticas (como os constantes cataclismos arcanos que assolam os cenários de RPG). A tecnologia, como a magia, era algo distante, que poucos conseguiam entender e manipular, algo poderoso, mas que não estava presente no dia a dia. Mas o mundo mudou radicalmente…
A revolução tecnológica dos anos 80 e 90 mudou totalmente nossa maneira de viver. A tecnologia entrou com força total em nossas casas, seja no campo ou na cidade. Aparelhos tecnológicos mudaram totalmente nossa maneira de viver e pensar. Tudo é possível através da tecnologia. Essa nova maneira de viver e pensar trouxe novas influências para as mais novas geração de jogadores, para aqueles que cresceram durante a revolução. Porém, quando essa geração olhava os cenários mais tradicionais, sentia que algo não estava certo: o conceito não estava coerente com a realidade. Como a tecnologia havia mudado o mundo, a magia podia e devia mudar a vida medieval como conhecemos. Como um cenário de fantasia com magia podia se assemelhar a uma cidade medieval real sem magia? Alguma coisa estava faltando e a tecnologia era a pista. A magia era a tecnologia da fantasia e ela deveria mudar a vida do cenário, ainda mais quando as regras diziam exatamente isso.
Com a nova versão do D&D, o D20, os personagens mudaram, mas os mundos continuaram os mesmos. Um ladrão no 3° nível tem facilidade em andar sem ser notado pela milícia da cidade. Então por que a guarda não tem itens mágicos para detectá-lo? Criar itens mágicos está muito mais simples e fácil, então porque não existem lojas de magia espalhadas pelo mundo? Por que não existem arcanos que vivem apenas da construção e venda de itens poderosos? Se um mago do 6° nível pode voar, por que ele precisa de uma montaria? Se uma magia de 4° nível molda uma rocha em qualquer forma pensada, por que não construir prédios gigantescos, apenas usando a magia? Se um mago pode controlar o tempo, como pode haver seca e fome no reino? O mago não sofre ao lançar magias e se não usá-las também não ganha nada, então por que não usá-las ao máximo, porque usá-las apenas nas aventuras e não no dia a dia? Porque usar tochas, se luz é uma magia de nível 0 e um item que brilha constantemente tem um custo de produção baixíssimo?
Essas são apenas algumas das dúvidas levantadas diariamente pelos jogadores mais novos ao encarar cenários mais tradicionais, porque esses jogadores tem um visão bem diferente dos criadores originais dos cenários mais antigos e famosos, escritos há anos. Esses jovens cresceram vendo como a tecnologia, ou magia, pode mudar o dia a dia e analisando as regras do D20, eles tem razão. As regras apontam para uma utilização massiva e diária da magia no cotidiano. São exatamente esses questionamentos que “Eberron” explora muito bem. Eberron é um mundo onde a magia está presente em tudo, como deveria ser. Não é “Eberron” que é um mundo high-fantasy, os cenários tradicionais que são se transformaram em low-fantasy.
Isso não quer dizer que um cenário seja melhor que outro, ou que eles estejam errados, com falhas. São apenas duas maneiras diferentes de usar a magia. Mas os cenários mais antigos foram criados para outras regras, com outros conceitos em mente, que hoje mudaram (na segunda edição de D&D o mago precisava de mais pontos de experiência que qualquer outra classe para passar de nível). Por isso, “Eberron” pode parecer estranho, errado para quem está acostumado com poucos magos no mundo, onde as magias são raras… Mas o cenário usa apenas aquilo que o D20 oferece, ele segue as regras ao pé da letra. Além de ser excepcionalmente bem escrito e desenvolvido, e acima de tudo: é extremamente coerente. Quem diz que “Eberron” é uma colcha de retalhos, com certeza não leu os livros básicos do cenário. Tudo tem uma explicação, tudo faz sentido.
Não é a toa que “Eberron” é um dos maiores sucessos da Wizards e hoje ela investe mais em Eberron que no própria “Forgotten Realms”, até pouco tempo atrás o cenário mais jogado do mundo. Hoje, a maioria das miniaturas lançadas pela Wizards são para Eberron. O RPG online de D&D é em Eberron. Eberron vem conquista o mundo, não porque é high-fantasy, mas porque é coerente, bem escrito, muito criativo, muito divertido e principalmente: moderno. Em resumo “Eberron” faz sucesso porque é ótimo.
Por isso, não escute tudo o que os antigos jogadores idosos reclamões dizem de Eberron (brincadeira…) ou quem diz que tudo é ruim menos o seu cenário. Leia você o livro. De uma chance para esse maravilhoso cenário do século XXI. Ele vai te surpreender bastante… Sempre positivamente… Quem diz isso é alguém que é fã de “Greyhawk” e tinha dúvidas sobre a qualidade do cenário até ler o livro básico e virar mais um fã de “Eberron”.
Seja mais um iluminado pelos Exorcistas da Chama de Prata.
* Publicado originalmente pela RedeRPG (www.rederpg.com.br).
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