O cinema brasileiro sempre foi assim: intercala suas glórias e fracassos de forma bem desigual – ora passa por um longo período de vacas gordas, ora não produz mais que filmes de péssima qualidade e interesse. Desde o início da proliferação das salas de cinema no Rio e em São Paulo, por volta de 1907, que surgiam juntamente à melhora no fornecimento de energia elétrica nas capitais, os primeiros filmes nacionais começaram a ser produzidos. Como sempre aconteceu, essas produções enfrentaram períodos de crise e de bonança.
Nas duas primeiras décadas do cinema falado, por exemplo, quando Hollywood já era uma máquina de fazer filmes, que vinham para o Brasil em toda sua pompa, existiram no Rio de Janeiro as chanchadas. Chanchadas eram aquelas famosas comédias precárias e bem esculachadas da Cia. Atlândida, cujos atores mais conhecidos eram Oscarito, Grande Otelo e Zezé Macedo. Histórias meio carnavalescas, exaltando o “Vagabundo” e recheadas de números musicais simples eram a composição dessas comédias do início do século. O público aplaudia esses filmes de baixo orçamento e lotava as salas de exibição.
:: O NASCIMENTO DA VERA CRUZ
Enquanto isso, em São Paulo, Franco Zampari, um empresário italiano, resolveu pôr em prática uma idéia. O empresário já tinha alguma experiência no ramo artístico com a sua companhia teatral TBC (Teatro Brasileiro de Comédia), e ao ver filmes de qualidade inferior como as “chanchadas cariocas” fazendo tanto sucesso no Rio apenas pelo fato de serem nacionais e possuírem uma identificação com o público, Zampari, juntamente com Francisco Matarazzo e outros empresários, criou uma companhia cinematográfica – seu objetivo era produzir filmes de qualidade similar aos de Hollywood.
A Companhia Vera Cruz somou-se ao universo cultural que se estabelecia em São Paulo naquela década, que viu o nascimento do Museu de Arte Moderna, de revistas especializadas e companhias teatrais.
Essa companhia idealizada por Zampari exerceu um papel importante não só no cinema nacional, mas também em toda história cultural do Brasil. As origens do audiovisual e a modernização da cultura devem um grande legado da Vera Cruz. Esta foi responsável também pela crescente profissionalização no cinema. A modernização do setor aqui no Brasil em todos os aspectos (sonorização, cenografia, montagem, técnicas de laboratório) é um dos “filhotes” deixados pela Cia., que aumentou também o número de profissionais como iluminadores, sonoplastas e cinegrafistas aqui no Brasil, espécies raras naqueles tempos. E seu legado não se limitou ao território nacional; seus filmes tiveram grande número de telespectadores e receberam prêmios internacionais.
“Produção Brasileira de Padrão Internacional” – este era o lema da Vera Cruz. Zampari, assim, se propôs a realizar cinema brasileiro em escalas industriais. Esse “padrão internacional” de certa forma aconteceu: a companhia cinematográfica de Vera Cruz foi fundada em São Bernardo do Campo, em 1949, nos moldes de Hollywood, e com mão de obra importada: os técnicos eram britânicos, austríacos, dinamarqueses e principalmente italianos. Pessoas de cerca de vinte e cinco países diferentes trabalharam lá. E não só os técnicos eram importados, mas todos os equipamentos também.
A construção da Cia. Vera Cruz foi um projeto ambicioso – recebeu aparelhos dos mais modernos para a época, com um investimento de 7,5 milhões de cruzeiros – o que, para a época, era uma fortuna. O terreno de 100 mil metros quadrados onde foi construída a Companhia era antes uma granja de Matarazzo, que a cedeu para que os estúdios Vera Cruz fossem erguidos. Seis palcos de filmagem, oficinas mecânicas, uma cidade cenográfica para filmagem de exteriores, salas de cortes, carpintaria, almoxarifado, restaurante e até casas para os artistas que lá trabalhavam faziam parte do inusitado projeto.
Após a inauguração da Cia Vera Cruz, em 1949, o pontapé inicial para sua “decolagem” foi a contratação de Alberto Cavalcanti, um diretor brasileiro que havia estudado na França e tinha um belo currículo, com passagens por estúdios franceses e britânicos. Convidado por Franco Zampari, o renomado diretor assinou um contrato, que lhe concedia o cargo de diretor geral da Companhia, e o aval para fazer com esse cargo tudo que seu coração mandasse. E logo os frutos da contratação foram colhidos: Cavalcanti mais do que depressa fez acordos com a Universal e Columbia Pictures, para que seus futuros filmes já tivessem um mercado e distribuição garantidos, já que o mercado brasileiro não seria suficiente para cobrir as despesas de suas almejadas produções.
Alberto Cavalcanti, porém, apesar de ter tido regalias na Vera Cruz, produziu apenas dois filmes, e pediu demissão após brigar com os chefes. Dentre seus dois filmes, Caiçara, de 1950, foi o primeiro longa-metragem com o selo da Vera Cruz. O filme foi filmado em Ilhabela, e foi lançado com estardalhaço aqui no Brasil, com considerável sucesso de público, mas sem muito retorno financeiro, devido a supostas fraudes nas bilheterias. “Caiçara” teve a produção de Cavalcanti e direção de Adolfo Celi, que acompanhava Franco Zampari desde os tempos da Cia TBC e foi outra contratação importante para a Cia Vera Cruz.
De 1949 a 1954, foram realizados 22 filmes de longa-metragem, numa média de seis filmes por ano, como era o objetivo da Companhia. Alguns títulos de filmes da Vera Cruz em seu período de ouro são Pulga na Balança, A Família Lero-Lero, Esquina da Ilusão, Luz Apagada, Tico Tico no Fubá. Mas os “mais mais” de todos, que foram enorme sucesso de bilheteria tanto no Brasil quanto lá fora são Sinhá Moça e O Cangaceiro. Até o cinema europeu abriu os braços para acolher essas superproduções – “O Cangaceiro”, dirigido por Lima Barreto, levou o prêmio de melhor filme de aventura no Festival de Cannes.
Em 1952, Mazzaropi foi contratado a peso de ouro e participou de três filmes da Cia, interpretando seu famoso personagem caipira. Os filmes que levaram seu nome no elenco foram Sai da Frente (1952), Nadando em Dinheiro (1953) e Candinho (1954). Este último foi concluído às pressas, devido ao processo de falência da empresa.
“O Cangaceiro” e “Sinhá Moça” marcaram o ápice da História da Companhia Vera Cruz, que a partir desses sucessos iniciou sua queda, culminando na falência da mesma. Os especialistas no assunto pregam que o projeto da Vera Cruz foi ambicioso demais. Seus idealizadores se lançaram com muita sede ao pote, querendo voar muito alto, investiram rios de dinheiro em obras grandes sem motivo, mas esqueceram-se de analisar elementos administrativos fundamentais como a distribuição dos filmes, sua exibição e arrecadação.
Muitos fatores contribuíram, juntos, para o fim do sonho de Zampari, mas o maior deles foi o faturamento dos filmes, que se concentrava nas mãos das empresas internacionais. De todo o lucro obtido nas bilheterias, a Vera Cruz não participava de metade, porque toda a comercialização no exterior era obra da Columbia Pictures, que ficava com todos os dólares arrecadados. Então, nem mesmo o sucesso de “O Cangaceiro” foi capaz de salvar a Companhia da falência – afinal, quem viu as “verdinhas” foram os donos da Columbia.
Outra dificuldade enfrentada pela Vera Cruz, além da falta de um sistema próprio de distribuição, foi a competitividade com os cinemas, que por vezes cobravam ingressos até mais baratos na exibição de filmes internacionais.
Vendo-se sem saída, Zampari teve que encaminhar o encerramento das atividades da Vera Cruz, sob o peso de uma dívida astronômica. “Candinho”, É Proibido Beijar e Floradas na Serra (grande sucesso de bilheteria) foram concluídos rapidamente.
Franco Zampari, numa tentativa desesperada, tirou uma quantia de seu próprio bolso com a intenção de salvar sua gigantesca Companhia, mas nem isso foi suficiente. A partir do Natal de 1954 a Companhia Vera Cruz não teve mais condições de produzir filmes, e Zampari viu-se amargurado, pobre e com sua saúde debilitada, morrendo sem ter se recuperado do golpe.
Em 1976, a família Khouri (ligada a Zampari) assumiu a dívida, quando a empresa entrou em concordata, e até hoje é responsável pela administração da Vera Cruz, que, ao contrário do que se pensa, não fechou. Ainda funciona, mas agora é apenas uma distribuidora. Alguém mais notou uma certa ironia cruel aí?
:: O PROJETO
Um projeto que atende pelo nome de Projeto Nova Vera Cruz e envolve a Secretaria de Estado da Cultura, a Fundação Padre Anchieta (TV Cultura) e a Prefeitura de São Bernardo do Campo, está saindo dos papéis. Esse projeto está sendo encabeçado por Sérgio Martinelli e tem previsão de acabar somente em 2007. Ele pretende, por hora, “recuperar a memória da Companhia por meio da aquisição e recuperação do acervo fílmico e iconográfico, da realização de estudos e pesquisas, da edição de livros e CD-ROMs e da produção de documentários”. Isso para, mais tarde, preparar a revitalização dos estúdios, que podem vir a ser, um dia quem sabe, definitivamente a tal da Hollywood brasileira, com uma produção industrial de filmes, como era o desejo de Franco Zampari.
A primeira parte do plano já está sendo executada desde 2001: Vera Cruz – Imagens e História do Cinema Brasileiro (lançado pela ABooks) é um dos livros que chegaram às estantes e tratam do assunto, e em junho desse ano foi lançado o primeiro volume da Coleção Vera Cruz – um Box com 3 DVDs contendo os filmes “Tico Tico no Fubá”, “Sinhá Moça” e “Uma Pulga na Balança”.
Os três DVDs trazem os filmes (um drama musical, um épico abolicionista e uma comédia de costumes) e, como de costume, extras. Mas, esses extras podem ser classificados como um dos mais deprimentes já vistos: apesar de todo o reconhecimento da Cia Vera Cruz, não existem entrevistas ou ao menos biografias dos envolvidos nos filmes. Os extras se compõem apenas de fotos.
Anselmo Duarte, Tonia Carrero (quando ainda era bonita), Marisa Prado, Piolim, Lima Barreto, Eliane Lage, Ricardo campos, Marina Freire, Abílio Pereira de Almeida, Renato Consorte, Waldemar Wey, Gilda Nery, Luiz calderaro, Paulo Autran, John Hebert e Eva Wilma foram nomes que brilharam nas telas sob a tutela da Companhia Vera Cruz e aparecem nesses três DVDs.
A Companhia Vera Cruz foi o mais próximo que o Brasil já conseguiu chegar do patamar de Hollywood – falando em termos de estúdios e produção industrial, que fique bem entendido. Mas quase toda a sua história estava esquecida, perdida e escondida em estantes de museus. Esse relançamento dos filmes veio muito bem a calhar para que sua memória possa ser reavivada.
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