Um senhor de 87 anos amado pela geração atual, e um gênio das HQs. É ele o autor de alguns termos muito utilizados hoje em dia nessa área, como graphic-novels – e ele que ditou o início oficial de sua existência, em Um Contrato com Deus. Ele é Will Eisner, autor de obras como No Coração da Tempestade, New York: A Grande Cidade e O Último Cavaleiro Andante – e o “deus” da arte seqüencial (e “deus” do El Cid também).
Até os fãs menos fervorosos de HQ já ouviram falar em “Will Eisner”. Isso porque o cara é conhecido nesse universo desde meados da década de 30, quando criou seu famoso detetive Spirit, aquele herói sem super poderes temido pelo submundo, e que é bem parecido fisicamente com o Máscara do saudoso programa de TV Rá Tim Bum.
O bom velhinho produz desde 1936, ano que estreou nos quadrinhos, fazendo tirinhas para jornais; e continua na ativa até hoje, deixando muitos daqueles novatos viciados em modismos de queixo caído ao verem cada nova publicação sua.
Aqui no Brasil, a Devir finalmente está lançando em português Avenida Dropsie: A Vizinhança, uma graphic-novel publicada em 1995 nos EUA.
:: A AVENIDA DROPSIE
Will Eisner, um nova-iorquino, criou novelas gráficas que giram em torno de sua cidade natal. Antes de ser apenas a ambientação da história, a Grande Maçã é a protagonista de suas criações nos casos de “Contrato com Deus”, O Edifício e Nova York. “Avenida Dropsie: A Vizinhança” não é diferente. Nessa graphic-novel, Eisner enfoca uma avenida fictícia, contando todas as transformações porque esta passou desde a data de fundação até seu fim, quando virou um campo cheio de entulhos, vítima de especulação imobiliária.
“Avenida Dropsie: A Vizinhança” flagra a evolução e o fim dos edifícios e da população que ocuparam essa avenida ao longo dos séculos. Dropsie nasceu em 1870, fundada por colonizadores holandeses e testemunhou as enormes mudanças de seus moradores, sua vida, crescimento e envelhecimento; numa alegoria que pode representar ruas e avenidas de qualquer metrópole do mundo.
Os holandeses “pais” da avenida viram sua hegemonia ser ameaçada pela chegada de outros grupos, com o passar dos anos. Ingleses, irlandeses, alemães, italianos, judeus, negros e latinos foram demarcando sua ocupação aos poucos, o que gerou conflitos étnicos contra os novos moradores. Isso mostra como os imigrantes sempre foram um dos maiores fantasmas não só dessa Dropsie fictícia, como da cidade de Nova York e dos EUA (aí acompanhados do tão combatido comunismo e, agora, dos terroristas).
Nas 176 páginas magistralmente escritas e traçadas por Will Eisner, acompanhamos a vida cotidiana de uma vizinhança do Bronx no decorrer das gerações, e sua passagem pelos diversos momentos históricos de uma potência em seus primeiros passos: a imigração, a chegada dos confortos da vida moderna, as duas grandes guerras, a crise de 29. Estes são alguns dos eventos pelos quais a protagonista da história – a avenida Dropsie – passou, conseguindo sobreviver o quanto pôde.
Will Eisner narra essa bela história do cotidiano familiar do Bronx do início do século XX com conhecimento de causa: ele foi um dos rebentos e moradores desse bairro nova iorquino.
:: WILL EISNER
Pioneiro nos quadrinhos norte-americanos, Eisner trabalha nisso há mais de 60 anos. Em sua carreira, vêem-se desde tirinhas até extensas graphic-novels. Adaptações de clássicos da literatura como Moby Dick e Dom Quixote para a “literatura gráfica” dos quadrinhos também figuram como elementos de seu currículo.
Foi no Brooklin, em NY, que nasceu Eisner. Mais especificamente no dia 6 de março de 1917. Filho de imigrantes judeus, foi criado em um cortiço – e essa fase de sua vida serviu como fonte de inspiração para muitas de suas graphic novels. Começou a desenvolver o interesse pela área artística já no colegial, e em 1936 fez sua estréia nos quadrinhos na revista WOW What a Magazine, onde até criou seus primeiros personagens, mas que tiveram vida curta.
Will Eisner, então, juntou-se a Jerry Iger, formando um estúdio, que mostrou-se ser uma parceria produtiva: várias tiras assinadas por eles foram publicadas em jornais da época. Anos depois, a dupla passou a recrutar novos artistas para trabalharem em seu estúdio. Nomes hoje conhecidíssimos nos quadrinhos, como Bob Kane e Jack Kirby faziam parte dessa safra de novatos desconhecidos.
Em 1939, Eisner encerrou a parceria para dedicar-se ao projeto de um suplemento para um jornal. Foi nesse suplemento que surgiu Spirit, seu mais famoso personagem. As histórias do detetive mascarado foram publicadas até a década de 60, apenas com uma interrupção nos anos da Segunda Guerra Mundial. Na verdade, nesse período o personagem foi desenhado por outros, enquanto seu criador fazia cartazes, ilustrações e quadrinhos de treinamento e entretenimento para as tropas estadunidenses.
Ao término da guerra, Will voltou a produzir Spirit, mas de forma mais reduzida, e fazendo o detetive explorar histórias mais diversas que na sua fase anterior. Enquanto isso, dedicava-se a outros projetos, e à fundação da American Visuals Corporation – uma companhia comercial dedicada à criação de “comics”, cartuns e ilustrações com fins educacionais e comerciais.
Com o fim da publicação de Spirit, Will Eisner passou a procurar uma maior profundidade nos seus quadrinhos, e foi com esse pensamento que escreveu, em dois anos, o “Contrato com Deus”. Esse livro, com fortes traços autobiográficos, marcou o início das graphic-novels (ou novelas gráficas), como as conhecemos hoje. A seguir, infindáveis outras novelas foram sendo escritas pelo autor, que não parou de produzir até hoje, já com 87 anos.
Além de ser o responsável por inúmeras obras em quadrinhos, Will Eisner foi o autor de um tratado sobre a criação dos mesmos, o Quadrinhos e Arte Seqüencial, onde criou alguns dos nomes técnicos utilizados por quadrinistas hoje. E é ele quem preside todos os anos o “Oscar dos quadrinhos”, que leva seu nome: Eisner Awards, que existe desde 1988.
:: PROJETOS VINDOUROS
Will Eisner acabou de finalizar The Plot, que trata da teoria da conspiração czarista retratada pelos Protocolos dos Sábios do Sião. Esse livro será publicado nos Estados Unidos na metade de 2005.
O Will de agora, já idoso, luta contra o anti-semitismo (peraí… Onde foi que eu já vi isso antes?) demonstrado por autores antigos, como Charles Dickens. No livro Oliver Twist, o autor inglês faz um retrato não muito bondoso de Fagin, um velho judeu ganancioso e líder de uma trupe de ladrões mirins. Fagin, the Jew foi criado pelo quadrinista para ir contra essa imagem estereotipada mostrada no clássico, reescrevendo a história de Fagin. O livro tem previsão de lançamento aqui no Brasil pela Cia. Das Letras, no segundo semestre do ano que vem.
Mas ainda em 2004, a Devir vai trazer para cá um conjunto de HQs com o título de Pequenos Milagres (que também se passam na Avenida Dropsie) e Narrativas Gráficas, uma espécie de continuação de “Quadrinhos e Arte Seqüencial”. Agora é só esperar, que Will Eisner não dá sinais de cansaço: pelo jeito, vai nos brindar com sua arte por mais algum tempo ^_^.
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