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Pode olhar rapidamente para os lados e constatar: nos dias de hoje, o líder revolucionário Che Guevara, um dos principais articuladores da revolução cubana, virou ícone pop. Está nos bottoms, nas camisetas, nos adesivos, nas capas de caderno. Virou até sátira do Casseta e Planeta. Muito antes disso, no entanto, Che era apenas o jovem argentino Ernesto Guevara de la Serna, 23 anos, estudante de medicina especializado em lepra. Muito antes do mito, havia o ser humano. E é esta a principal abordagem de Diários de Motocicleta, nova película de Walter Salles (diretor de Central do Brasil).
“Diários…” é muito mais do que um filme brasileiro. É uma produção globalizada. Totalmente falado em castelhano, traz um mexicano e um argentino nos papéis principais e um brasileiro na direção. A produção é inglesa, com co-produção francesa e com um produtor executivo norte-americano (no caso, o ator Robert Redford, cada vez mais interessado no cinema fora de Hollywood).
A história – que é inspirada nos diários do próprio Guevara e também no livro Con el Che por Sudamérica, de seu amigo Ernesto Granado – remete ao ano de 1952, quando dois jovens argentinos resolveram cruzar a América Latina a bordo de uma velha motocicleta Norton 500, ano 1939, gentilmente apelidada de La Poderosa. O objetivo? Percorrer oito mil quilômetros em quatro meses para saber mais a respeito de um continente cuja realidade eles conheciam apenas dos livros. De Buenos Aires até a península de Guajira, na Venezuela.
Ao lado de Guevara está seu grande amigo Granado, 29 anos, bioquímico muito bem-humorado e mulherengo, interessadíssimo numa jornada que os levaria a conhecer rabos-de-saia de vários países sul-americanos. Voltando ao seu fetiche por grandes e belíssimas locações e viagens intermináveis por estradas empoeiradas, a direção firme de Salles conduz a dupla por cenários de fotografia impecável, com a montagem precisa de Daniel Rezende (indicado ao Oscar por “Cidade de Deus”).
:: DIRETOR, PRODUÇÃO, ELENCO E PÚBLICO ENTRAM NA VIAGEM DE CHE
De comédia de situações envolvendo dois jovens e suas trapalhadas a bordo de uma moto velha e trepidante, aos poucos a história vai mudando de figura, à medida que Guevara e Granado começam a se deparar com as mazelas e injustiças sociais dos povos latinos no meio do caminho. Os risos dão lugar a reflexão. E é aí que ganham força as inspiradas interpretações de Gael Garcia Bernal como Che e, especialmente, do surpreendente Rodrigo De La Serna como Granado. E a história começa a crescer de maneira surpreendente, justificando os cinco anos que a produção tomou e também a merecida indicação a Cannes.
Filho de Che, Camilo Guevara definiu o filme como “uma jornada de dois amigos modificados por uma realidade que supunham, mas não conheciam”. E é exatamente neste ponto que o revolucionário começa a nascer dentro do estudante de medicina: quando o garoto se torna um homem. No entanto, não são apenas Granado e Guevara que tomam um soco na cara quando bombardeados com uma boa dose de realidade. Assim como Salles afirmou que toda a equipe e o elenco acabaram passando pela mesma transformação, ele construiu este “Diários de Motocicleta” para que VOCÊ acabe entrando de cabeça na experiência.
E consegue. Faz você querer embarcar nesta viagem, tornando-se menos brasileiro e mais latino. Menos bairrista. Como o próprio Che afirma, no filme: “Somos todos mestiços, descendentes dos indígenas”. Somos todos iguais. Sofremos da mesma forma, rimos da mesma forma. Estamos tão perto e ao mesmo tempo tão distantes.
O filme é sensível, delicado, envolvente, emocionante. E mostra o lado mais terno de um homem conhecido por ser um lutador ferrenho, símbolo da resistência comunista. No entanto, é a frase mais clichê de todas, aquela que acompanha quase 100% das camisas com a foto de Che, que define a sua transformação em “Diários de Motocicleta”: há de endurecer, mas sem perder a ternura. Jamais.
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