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O grande legado de Matrix para a história do cinema ainda é, depois do efeito bullet time (copiado à exaustão em toda sorte de filmes de ação e comédias), algo que pode ser apelidado de “efeito cool”. É mais ou menos assim: virou uma verdadeira mania vestir de couro e vinil preto os personagens de um filme e fazê-los parecerem estilosos em qualquer situação: saltando de um prédio, atirando, correndo, caminhando por um corredor escuro e assustador, com canos gotejantes por todos os lados. O tal olhar ‘blasé’ e o comportamento auto-destrutivo estão lá, por toda a parte. Tudo muito cool. Todo mundo tem que ser sexy e ao mesmo tempo perigoso. E é justamente aí que reside o principal defeito do badalado Anjos da Noite – Underworld, uma aventura com inspirações góticas totalmente artificial e que tenta o tempo todo se parecer com alguma coisa, mas que nunca consegue ter identidade própria.
Ao lado de Kill Bill – Vol.1, “Underworld” é campeão de downloads pela internet graças aos fanáticos sem a menor paciência de esperar a boa vontade das distribuidoras. Afinal, a película do estreante Len Wiseman chegou às telonas americanas em setembro do ano passado e só agora aporta nos cinemas brazucas. No entanto, ao contrário do que acontece com o filme de Tarantino, o barulho em torno de “Underworld” não se justifica.
Como filme de horror, ele simplesmente não funciona. Afinal, as figuras dos vampiros e lobisomens acabam tão banalizadas na forma de guerreiros urbanos armados até os dentes com metralhadoras que não dão medo em ninguém. Como aventura, funciona menos ainda. Os elementos estéticos de “Matrix” são tão nitidamente detectáveis que dá vontade de levantar e pedir o dinheiro de volta – mas eu não tinha pagado para ver o “Underworld”? Selene, personagem de Kate Beckinsale, é claramente uma versão vampírica da Trinity. E quando não está tentando se parecer com “Matrix”, “Underworld” fica tentando copiar Blade (que, por si só, já não é nenhum primor de filme).
:: MAS E A HISTÓRIA?
Como se já não bastassem os muitos problemas estruturais deste “Underworld”, ainda temos que aguentar uma história recheada de clichês e previsível até os caninos (com o perdão do trocadilho). A saber: Selene (Beckinsale) faz parte de uma antiquíssima casta de vampiros que domina a sociedade humana nas sombras há muitos séculos. No entanto, os sugadores de sangue travam, há cerca de 1000 anos, uma terrível batalha com os lycans – ou lobisomens, como queiram. Ninguém sabe direito como a guerra começou, já que o assunto é praticamente proibido em ambos os lados. O fato é que Selene descobre que os homens-lobo estão muito interessados num garotão chamado Michael Corvin (Scott Speedman, da série “Felicity”, péssima escolha para o papel), um enfermeiro que pode ser a chave para a eliminação da raça dos vampiros.
É óbvio que Selene resolve investigar o moço. E é óbvio que ele acaba sendo mordido pelos lycans e torna um deles – portanto, um inimigo em potencial para a matadora. E é mais óbvio ainda que os dois acabam se apaixonando. Mas se você achava que o amor proibido entre os dois seria o cerne da história, está redondamente enganado. Apesar de ser esta a impressão que o trailer e todo o material de divulgação passaram desde o começo, o aspecto “Romeu e Julieta no mundo das trevas” acaba sendo deixado de lado em muitos momentos do filme. Em seu lugar, uma série de tiroteios muitas vezes repetitivos e sem qualquer nexo – que servem somente para mostrar os saltos acrobáticos de Selene enquanto atira.
Fato: dois coadjuvantes roubam a cena na história. O primeiro deles é o canastrão Kraven, atual líder do clã dos vampiros, vivido de uma maneira afetada e divertidíssima pelo irlandês Shane Brolly. O ator é tão ruim que chega a arrancar gargalhadas. Por outro lado, vale menção a participação sutil do inglês Michael Sheen, que usa toda a sua experiência de teatro para construir um cativante e provocativo Lucian, o comandante da tropa dos lupinos.
:: ACHARAM QUE EU IA ESQUECER DE FALAR DO RPG?
A comparação mais frequente que “Underworld” sofre é com a série de livros de RPG do World of Darkness, publicados pela editora americana White Wolf. Neles, os jogadores podem viver vampiros, lobisomens e outras criaturas sombrias – todos se escondendo no submundo da raça humana enquanto lutam pela sobrevivência.
A editora, por sinal, entendeu que a semelhança estava indo um pouco além do superficial e entrou com um processo, no distrito de Atlanta, contra a Sony, contra a distribuidora do filme, a Screen Gems, e contra a produtora Lakeshore Entertainment, citando dezessete tipos de infração de direitos autorais. Segundo consta, a autora Nancy A. Collins publicou um conto em 94, pela White Wolf, cujo nome era The Love of Monsters (constante da coletânea ‘Dark Destiny’). Ambientado no World of Darkness, o livro tinha basicamente a mesma história de “Underworld”: a vampira que vive um amor proibido pelo lobisomem…
Disputas judiciais à parte, o fato é que as similaridades com os personagens da WW não são poucas, é verdade, mas as diferenças são primordiais. A começar pelo fato de que uma mordida é suficiente para transformar, em alguns minutos, alguém em vampiro e/ou lobisomem. A maldição acaba sendo entendida como algo menos sobrenatural e mais orgânico, científico, quase como um vírus, tirando um pouco da mística da coisa toda. Portanto, os vampiros não são vistos como mortos-vivos, o que permite coisas como uma “vampira grávida” e afins.
Em “Underworld”, existe pouquíssima preocupação com o mistério, com o segredo, com o que a White Wolf chama de “máscara”. Logo na primeira sequência, as duas castas não dão a menor atenção para os pobres humanos passando pela estação de metrô e descarregam uma chuva de balas uns contra os outros, mostrando dentes pontudos e até assumindo formas monstruosas sem o menor pudor. Muito menos sutil, mas muito mais adequado para a geração MTV.
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