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MARÉ DA MANHÃ
A vida é breve,
Escassos os prazeres,
E o navio com um rasgão,
E afogada a tripulação,
Mas vejam! Vejam!
Como é azul
É o mar!
O último poema escritopor Bandy, o Justo, o poeta nômade do Abarat
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O QUARTO 19
A TAREFA QUE A SRTA. SCHWARTZ havia passado para a classe de Candy era bastante simples. Cada um dos alunos tinha uma semana para trazer à escola dez fatos interessantes sobre a cidade em que todos eles viviam. Alguma coisa sobre a história de Galinhópolis seria ótimo – disse ela – ou, caso os alunos preferissem, fatos sobre como a cidade era hoje, o que queria dizer, é claro, a ladainha de sempre sobre a criação de frangos no Minnesota moderno.
Candy fizera o melhor que podia. Visitara a biblioteca da escola e vasculhara as prateleiras à procura de alguma coisa, qualquer coisa sobre a cidade que lhe parecesse vagamente interessante. Não encontrou coisa nenhuma. Nada, zero, neres de pitibiriba. Tinha uma biblioteca na rua Naughton que era dez vezes maior que a da escola; por isso foi para lá. Novamente fuçou as prateleiras. Havia alguns livros sobre o Minnesota que mencionavam a cidade, mas eram os mesmos fatos tediosos, repetidos em volume após volume. Galinhópolis tinha uma população de 36 793 habitantes e era a maior produtora de frango no estado. Um dos livros, após mencionar os frangos, descrevia a cidade como “sem nenhum outro destaque”.
Perfeito, pensou Candy. Moro numa cidade sem nenhum outro destaque. Bem, aquele era o Fato Número Um. Só precisava de mais nove.
– Vivemos na cidade mais chata do país – ela se queixou para a mãe, Melissa, ao voltar para casa. – Não consigo encontrar nada que valha a pena escrever para a senhorita Schwartz.
Melissa Quackenbush estava na cozinha, fazendo um bolo de carne com a porta fechada para não perturbar Bill, o pai de Candy. Ele estava em frente à televisão tirando uma soneca induzida pelo álcool, e a mãe de Candy queria que ele continuasse assim.
Quanto mais ele permanecesse inconsciente, mais fácil seria para todos na casa – inclusive Don e Ricky, os irmãos de Candy – prosseguirem com as suas vidas. Ninguém jamais mencionava isso em voz alta. Era um entendimento mudo entre eles. A vida se tornava mais agradável para todo mundo quando Bill Quackenbush estava dormindo.
– Por que você diz que é chata? – perguntou Melissa enquanto temperava o bolo de carne.
– Dê só uma olhada lá fora – disse Candy.
Melissa não se deu ao trabalho, mas isso foi só porque já conhecia bem demais o cenário do lado de fora da janela. Para além da vidraça ensebada ficava o caótico quintal da família: a grama, que chegava ao meio da canela, ressecada pela onda de calor que chegara inesperadamente em meados de maio, a piscina inflável que tinham comprado no verão passado e nunca desinflaram, agora um círculo sujo de plástico vermelho e branco no extremo oposto do quintal. Além da piscina murcha estava a cerca quebrada. E além da cerca? Outro quintal em condições não muito melhores, e outro, e outro, até que finalmente acabavam os quintais, e também as ruas, e começava a pradaria deserta.- Sei o que você quer para a sua pesquisa.
– É? – disse Candy, indo para a geladeira e pegando um refrigerante. – O que é que eu quero?- Você quer alguma coisa bizarra – disse Melissa, pondo a carne na assadeira e apertando-a com os polegares. – Você tem um quê de mórbido dentro de si, igual à sua avó Frances. Ela costumava ir a funerais de pessoas que nem conhecia …
– Não acredito que ela fazia isso – disse Candy com uma risada.
– Fazia, sim. Eu juro. Ela adorava qualquer coisa desse tipo. Você puxou isso dela. Certamente não foi de mim nem do seu pai.
– Você não sabe como isso me deixa contente…
– Você sabe o que eu quis dizer – protestou a mãe de Candy.
– Então você não acha Galinhópolis chata? – disse Candy.
– Existem lugares piores, acredite – disse Melissa. – Pelo menos a cidade tem um pouco de história…
– Não tem grande coisa. Não segundo os livros que eu andei consultando – disse Candy.
– Sabe com quem você devia falar? – disse Melissa.
– Com quem?
– Com Norma Lipnick. Você se lembra da Norma? Aquela que trabalhava junto comigo no Hotel Árvore Balsâmica?
– Vagamente – disse Candy.
– Coisas estranhas de todos os tipos acontecem em hotéis. E o Árvore Balsâmica existe desde… Ora, não sei. Pergunte à Norma, ela vai lhe dizer.
– É aquela com o cabelo louro-platinado que sempre usa um exagero de batom?
Melissa ergueu os olhos para a filha com um sorrisinho.
– Não vá dizer coisas indelicadas para ela agora.
– Eu não faria isso.
– Sei como essas coisas escapam da sua língua.
– Mãe, eu realmente vou me comportar.
– É bom. Faça isso. Ela agora é subgerente lá, portanto se você for realmente simpática com ela, e fizer as perguntas certas, aposto como ela vai lhe dar alguma coisa para o seu projeto que ninguém mais na classe terá.
– Como o quê?
– Vá até lá e pergunte a ela. Ela vai se lembrar de você. Peça que conte a respeito de Henry Murkitt.
– Quem é Henry Murkitt?
– Vá perguntar para ela. A pesquisa é sua. Você devia sair um pouco e bater perna. Como um detetive, um investigador.
– Tem muita coisa para ser investigada?
– Você vai ficar surpresa.
E ficou mesmo. A primeira surpresa foi a própria Norma Lipnick, que não era mais a mulher de mau gosto de que Candy se lembrava, com os cabelos desfiados e armados, e o vestido curto demais. Nos cerca de oito anos que passaram desde que Candy a vira pela última vez, Norma deixara os cabelos ficarem naturalmente grisalhos. O batom vermelho-vivo era coisa do passado, assim como os vestidos curtos. Mas assim que Candy se apresentou, o novo recato profissional foi jogado aos ventos e emergiu a mulher calorosa e tagarela de que Candy se lembrava.
– Meu Deus, como você cresceu, Candy – disse ela. – Nunca mais vi você por aqui; nem você, nem a sua mãe. Ela está bem?
– Acho que sim.
– Ouvi dizer que o seu pai perdeu o emprego na granja. Parece que ele teve uns probleminhas com a cerveja… – Candy não teve tempo de concordar nem de discordar. – Sabe de uma coisa? Acho que às vezes as pessoas deviam ter uma segunda oportunidade. Se você não dá uma segunda oportunidade às pessoas, como é que elas vão mudar?
– Não sei – disse Candy, sentindo-se pouco à vontade.
– Homens – disse Norma. – Fique longe deles, querida. Não valem os problemas que causam. Estou no meu terceiro casamento, e não dou mais de dois meses para ele.
– Oh…
– De qualquer jeito, você não veio aqui para me ouvir tagarelar. Então, em que posso ajudá-la?
– Eu tenho este trabalho da escola, sobre Galinhópolis – explicou Candy. – Foi a senhorita Schwartz que passou, ela insiste em nos passar tarefas que só serviriam para alunos da pré-escola. Além disso, ela não gosta muito de mim…
– Ora, não se deixe abater por ela, meu bem. Há sempre alguém para infernizar a sua vida. Logo você vai terminar a escola. O que vai fazer então? Trabalhar na granja?
Candy sentiu um enorme peso nos ombros ao imaginar aquela horrenda perspectiva.
– Espero que não – disse ela. – Quero fazer algo melhor da minha vida.
– Mas não sabe o quê?
Candy fez que não com a cabeça.
– Não se preocupe, você vai acabar descobrindo – disse Norma. – Espero que descubra, porque aposto que você não quer ficar encalhada aqui.
– Não, não quero. Não quero mesmo.
– Então você tem de fazer uma pesquisa sobre Galinhópolis…
– Sim. E minha mãe disse que eu devia investigar certas coisas que aconteceram no hotel. Ela disse que você saberia do que ela estava falando.
– Disse mesmo? – disse Norma, com um sorrisinho provocador.
– Ela disse para eu perguntar sobre Henry…
– … Murkitt.
– Sim, Henry Murkitt.
– Pobre e velho Henry. O que mais ela disse? Ela contou sobre o quarto 19?
– Não. Ela não falou de quarto nenhum. Só me deu esse nome.
– Bem, eu posso lhe contar a história – disse Norma. – Mas não sei se a história de Murkitt vai ser o tipo de coisa que essa senhorita Schwartz está querendo.
– Por que não?
– Ora, porque é um tanto sombria – disse Norma. – Trágica, na verdade.
Candy sorriu.
– Bem, mamãe diz que eu tenho um fraco por tragédias, portanto é provável que eu goste.
– Tragédias, é? Muito bem – disse Norma. – Acho que preciso contar a história toda. Sabe, Galinhópolis era antes chamada de Murkitt.
– Verdade? Isso não estava em nenhum dos livros sobre o Minnesota.
– Sabe como é, existe a história que vai parar nos livros, e existe a história que não vai.
– E Henry Murkitt…?
– … faz parte da história que não vai.
– Ahn.
Candy estava fascinada. Lembrando-se do que a mãe havia dito sobre fazer um pouco de trabalho de detetive, ela pegou seu caderno e começou a escrever. Murkitt. História que não conhecemos.
– Então o nome da cidade era em homenagem a Henry Murkitt?
– Não – disse Norma. – Era em homenagem ao avô dele, Wallace Murkitt.
– Por que mudaram o nome?
– Acho que Galinhópolis é um bom nome, né? Este lugar tem mais dessas malditas galinhas do que gente. E às vezes eu acho que as pessoas se preocupam mais com as galinhas do que umas com as outras. Meu marido trabalha na granja, e tudo o que ouço dele e dos seus amigos…
– É conversa sobre galinhas?
– Galinhas, galinhas, e mais malditas galinhas. – Norma deu uma olhada no seu relógio de pulso. – Sabe, hoje eu não tenho muito tempo para lhe mostrar o quarto 19. Preciso atender um grande grupo de pessoas que está para chegar. Podemos fazer isso em algum outro dia?
– Preciso entregar meu relatório amanhã de manhã.
– Vocês, jovens, sempre deixando as coisas para o último minuto – disse Norma. – Bem, está certo. Faremos isso rapidamente. Mas trate de anotar tudo, pois não vou ter tempo para repetir coisa nenhuma.
– Estou pronta – disse Candy.
Norma tirou a sua chave mestra do bolso.
– Linda? – chamou a mulher que estava trabalhando à mesa da frente. – Estou subindo até o quarto 19.A mulher franziu o cenho.
– É mesmo? Para quê?
A pergunta ficou sem resposta.
– Não levarei mais de dez minutos – disse Norma.
E conduziu Candy para fora da área de recepção, falando enquanto andava.
– Estamos agora na parte nova do hotel – explicou ela. – Foi construída em 1964. Mas basta passarmos por aqui – ela acompanhou Candy através de uma porta dupla – e entramos no velho hotel. Chamava-se Hotel Alto-Mar. Não me pergunte por quê.
Mesmo se não tivesse sido informada de que havia uma diferença entre a parte do hotel onde estava antes e aquela para onde Norma a trouxera, Candy teria percebido. Aqui, os corredores eram mais estreitos e menos iluminados. Havia um cheiro azedo de coisa velha no ar, como se alguém tivesse deixado o gás aberto.
– Só colocamos gente na parte velha do hotel se todos os outros quartos estiverem ocupados. E isso só acontece quando há um Encontro dos Compradores de Galinhas. Mesmo assim, tentamos nunca pôr ninguém no quarto 19.
– Por que isso?
– Bem, não é que seja exatamente mal-assombrado. Muito embora tenha havido histórias. Pessoalmente, eu acho esse negócio de vida após a morte uma bobagem. Você tem uma vida para viver, e deve aproveitá-la o melhor possível. Minha irmã abraçou a religião no ano passado e está se preparando para uma canonização, eu juro.
Norma levara Candy até o fim de um corredor, onde havia uma escada estreita, iluminada por uma única lâmpada. Ela lançava uma luz amarelada que não contribuía em nada para melhorar a aparência do papel de parede sem graça e da pintura rachada.
Candy quase chegou a comentar que não era de estranhar que a administração mantivesse aquela parte do hotel fora das vistas dos hóspedes, mas mordeu a língua, lembrando-se do que a mãe dissera sobre guardar para si mesma os pensamentos menos corteses.
Elas subiram as escadas, que rangiam. Eram íngremes.
– Eu devia parar de fumar – observou Norma. – Isso ainda vai me matar.No topo havia duas portas. Uma era o quarto 17. A outra era o quarto 19.
Norma entregou a chave mestra para Candy.
– Você quer abrir? – perguntou Norma.
– Claro.
Candy pegou a chave e introduziu-a na fechadura.
– Você precisa dar uma mexidinha na chave.
Candy obedeceu. Com certo esforço, a chave girou e Candy abriu a porta mal azeitada do quarto 19.
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