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Gato Chant tinha muita admiração por sua irmã mais velha, Gwendolen. Ela era bruxa. Ele a admirava e era bastante agarrado a ela. Grandes mudanças aconteceram na vida dos dois e deixaram Gato sem outra pessoa a quem agarrar-se. A primeira grande mudança veio quando os pais os levaram para uma excursão pelo rio, num navio a vapor movido por uma grande roda na popa. Saíram em grande estilo: Gwendolen e a mãe usando vestidos brancos com fitas, Gato e o pai em seus ternos domingueiros de sarja azul, que lhes dava comichões na pele. Era um dia quente. O navio estava apinhado. As pessoas, em suas roupas de domingo, conversavam e riam, comendo moluscos em fatias finas de pão branco com manteiga.
O órgão a vapor, ofegante, tocava melodias populares, de modo que as pessoas não conseguiam escutar umas às outras. Na realidade, o navio levava gente demais e era velho demais. Alguma coisa não deu certo na pilotagem e toda aquela multidão de gente em suas melhores roupas domingueiras rindo e comendo moluscos foi arrastada pela correnteza da barragem. O navio colidiu com uma das traves que supostamente serviam para impedir que as pessoas fossem arrastadas, e, por ser velho, simplesmente fez-se em pedaços. Gato lembrava-se do órgão tocando e das pás da grande roda girando no céu azul. Nuvens de vapor escapavam ruidosamente dos canos quebrados e abafavam os gritos da multidão, enquanto todas as pessoas a bordo eram varridas para o outro lado da barragem.
Foi um acidente horrível. Os jornais denominaram-no “O Desastre do Saucy Nancy”. As mulheres, com suas roupas pesadas, não conseguiam nadar. Os homens, em seus ternos de sarja azul apertados, estavam em situação um pouquinho melhor. Gwendolen, porém, era bruxa, de modo que não se afogou. E Gato, que se abraçara a Gwendolen quando o barco atingiu a trave, escapou também. Os sobreviventes foram pouquíssimos.
Todo o país ficou chocado. A empresa proprietária do navio e a Prefeitura de Wolvercote dividiram as despesas dos funerais. Gwendolen e Gato ganharam pesados trajes de luto, pagas com dinheiro público, e acompanharam a procissão de carros fúnebres numa carruagem puxada por cavalos negros com plumas negras na cabeça. Os outros sobreviventes também compareceram. Gato olhava para eles a perguntar-se se seriam bruxas e bruxos, mas nunca chegou a descobrir.
O Prefeito de Wolvercote havia criado um Fundo para os sobreviventes; chegava dinheiro de todoo país. Todos os outros sobreviventes pegaram a sua parte e foram começar vida nova em outro lugar; só restaram Gwendolen e Gato, e, como ninguém conseguira encontrar algum parente deles, continuaram em Wolvercote.
Durante algum tempo eles foram célebres. Todos mostraram-se muito bondosos. Todo o mundo comentava sobre os lindos orfãozinhos. De fato, eles eram mesmo lindos. Ambos eram louros, de pele clara e olhos azuis, e as roupas pretas lhes caíam bem. Gwendolen era muito bonitinha – e alta, para a idade que tinha. Gato era pequeno para a sua idade. Gwendolen era muito maternal para com ele, e isso deixava as pessoas comovidas.
Gato não se importava com a celebridade. Aquilo compensava um pouco o seu estado de espírito vazio e perdido. As damas davam-lhe bolo e brinquedos. Os Conselheiros Municipais vinham perguntar como ele se sentia; e o Prefeito o visitava e lhe dava tapinhas carinhosos na cabeça. O Prefeito explicou que o dinheiro do Fundo seria colocado num banco até que eles crescessem. Enquanto isso, a municipalidade custearia sua criação e sua educação.
– E onde vocês gostariam de morar, amiguinhos? – ele perguntou com bondade.
Gwendolen disse imediatamente que a velha Sra. Sharp, do andar de baixo, oferecera-se para ficar com eles.
– Ela sempre foi muito boa conosco – a menina explicou.
– Adoraríamos morar com ela.
A Sra. Sharp tinha sido mesmo muito bondosa. Ela também era bruxa – o cartaz na janela da sua sala de visitas dizia “Bruxa Registrada” – e se interessava por Gwendolen. O Prefeito hesitou; como todas as pessoas que não tinham dons de bruxaria, ele não aprovava aqueles que os possuíam. Perguntou a Gato como ele se sentia a respeito desse plano de Gwendolen. Gato não se importava; até preferia morar na casa onde estava acostumado, mesmo que fosse no andar de baixo. Como o Prefeito achava que era preciso fazer o possível para que os dois órfãos ficassem felizes, concordou. Gwendolen e Gato mudaram-se para a casa da Sra. Sharp.
Rememorando esse episódio, Gato acreditava que foi daí em diante que ele teve a certeza de que Gwendolen era bruxa. Antes, não estava tão certo. Quando perguntara aos pais, eles haviambalançado a cabeça, suspirando e assumindo um ar infeliz. Gato ficara confuso, pois se lembrava do problema terrível que houve quando Gwendolen lhe deu cólicas. Ele não entendia como os pais poderiam culpar Gwendolen por isso se ela não fosse realmente bruxa. Mas tudo isso agora havia mudado; a Sra. Sharp não fazia segredo do fato.
– Você tem um verdadeiro talento para a magia, queridinha – dizia, sorrindo para Gwendolen. – E eu não estaria sendo justa com você se deixasse ele ser desperdiçado. Temos que lhe arranjar um mestre imediatamente. Para começar, não seria mal se você procurasse o Sr. Nostrum, na casa ao lado. Ele pode ser o pior necromante da cidade, mas sabe ensinar. Vai lhe dar uma boa base, meu bem.
O preço que o Sr. Nostrum cobrava para ensinar magia era de uma libra esterlina por hora no Curso Básico e, depois, um guinéu por hora no Curso Avançado. Um pouco caro, como declarou a Sra. Sharp. Ela colocou o seu melhor chapéu, que era coberto de continhas pretas, e correu à Prefeitura, para ver se o Fundo pagaria as aulas de Gwendolen. Para sua contrariedade, o Prefeito recusou. Ele disse à Sra. Sharp que bruxaria não fazia parte de uma educação normal. A Sra. Sharp chegou de volta chacoalhando as contas do chapéu em sua irritação, trazendo uma caixa de papelão que o Prefeito lhe dera, cheia de miudezas que as bondosas damas tinham recolhido ao limparem o quarto de dormir dos pais de Gwendolen.
– Quanto preconceito! – exclamou a Sra. Sharp, deixando a caixa sobre a mesa da cozinha. – Se uma pessoa possui um dom, tem o direito de desenvolver isso, e foi o que eu disse a ele! Mas não se preocupe, meu bem. Há jeito para tudo – continuou ela, vendo que Gwendolen parecia decididamenterevoltada. – O Sr. Nostrum aceitaria ensinar-lhe de graça, se conseguirmos encontrar a coisa certa para usarmos como isca. Vamos dar uma olhada nesta caixa; pode ser que os seus pais, coitados, tenham deixado alguma coisa que poderia servir certinho.
Assim dizendo, a Sra. Sharp derramou sobre a mesa o conteúdo da caixa. Era uma estranha coleção de objetos – cartas, rendas, lembranças. Gato não se lembrava de metade daquelas coisas. Havia uma certidão de casamento declarando que Francis John Chant desposara Caroline May Chant 12 anos antes na Igreja de Santa Margaret, em Wolvercote, e um buquê de flores secas que a noiva provavelmente levou durante a cerimônia. Debaixo dessas coisas o menino encontrou um par de brincos cintilantes que ele nunca vira a mãe usar. O chapéu da Sra. Sharp chacoalhou quando ela inclinou-se rapidamente sobre eles.
– São brincos de diamante! – exclamou. – A mãe de vocês deve ter tido dinheiro! Ora, se eu mostrar estes brincos ao Sr. Nostrum… Mas eles renderiam mais se eu levasse para o Sr. Larkins.
O Sr. Larkins era o dono da loja de quinquilharias na esquina – só que nem sempre eram quinquilharias. Entre os apetrechos de lareira feitos de bronze e as peças de louça rachadas, podia-se encontrar coisas bastante valiosas, e também um cartaz discreto dizendo “Mercadorias Exóticas” – o que significava que o Sr. Larkins também vendia asas de morcego, salamandras secas e outros ingredientes de magia.
Não havia dúvida de que o Sr. Larkins ficaria muito interessado em um par de brincos de diamantes. A Sra. Sharp arregalou os olhos gulosos e saltados, enquanto estendia a mão para pegar os brincos. Gwendolen estendeu a mão para eles ao mesmo tempo. Não disse coisa alguma; tampouco a Sra. Sharp. Ambas ficaram com a mão parada no ar. Houve a sensação de um embate feroze invisível, então a Sra. Sharp retirou sua mão.
– Obrigada – disse Gwendolen em tom frio, guardando os brincos no bolso do seu vestido preto.
– Entende o que quero dizer? – perguntou a Sra. Sharp, aceitando a situação. – Você tem talento de verdade, meu bem!
Ela voltou a remexer nas coisas dentro da caixa. Achou um cachimbo velho, algumas fitas, um raminho de urze seca, cardápios, entradas para concertos e, finalmente, um maço de cartas velhas. Deslizou o polegar pela borda do maço.
– Cartas de amor – declarou. – Dele para ela. Pousou o maço sem olhar para ele e pegou outro maço de cartas. – Dela para ele. Inúteis.
Gato, observando o polegar largo e roxo da Sra. Sharp deslizar por um terceiro maço de cartas, concluiu que ser bruxa devia economizar muito tempo.
– Cartas de negócios – informou a Sra. Sharp. Seu polegar estacou e novamente tornou a subir pelo maço. – Ora, que é que temos aqui?
Ela desenrolou a faixa cor-de-rosa que envolvia o maço e cuidadosamente retirou três cartas. Desdobrou-as. – Crestomanci! – exclamou.
Mal acabou de pronunciar essa palavra, cobriu a boca com a mão, pondo-se a resmungar por trás dela. Tinha o rosto vermelho. Gato via que ela estava ao mesmo tempo surpresa, assustada e cobiçosa.
– Ora, que é que ele estava querendo ao escrever para o pai de vocês? – perguntou, assim que se recuperou.
– Vamos ver – disse Gwendolen.
A Sra. Sharp colocou as três cartas abertas sobre a mesa da cozinha, e Gwendolen e Gato inclinaram-se sobre elas. A primeira coisa que impressionou Gato foi a energia da assinatura em todas as três. A próxima coisa que ele viu foi que duas das cartas eram escritas com a mesma caligrafia poderosa da assinatura. A primeira era datada de 12 anos antes, logo depois do casamento dos pais. Dizia:
Caro Frank: Agora, não vá encher-se de arrogância. Só ofereci porque achei que teria condições de ajudar. Ainda pretendo ajudá-lo, da maneira que puder, se você me disser o que posso fazer. Sinto que você tem direito a isso.
Sinceramente,
Crestomanci
A segunda carta era ainda mais curta:
Caro Chant:
O mesmo para você. Vá para o inferno.
Crestomanci
A terceira carta era datada de seis anos antes, e fora escrita por outra pessoa. Crestomanci limitara-se a assiná-la.
Senhor,
Há seis anos o senhor foi avisado de que algo como isso que o senhor relata poderia acontecer, e o senhor deixou bem claro que não desejava ajuda de minha parte. Não estamos interessados nos seus problemas.
E isto aqui não é uma instituição de caridade.
Crestomanci
– Que será que o pai de vocês disse a ele? – perguntou-se a Sra. Sharp, entre curiosa e temerosa. – Bom… Que é que você acha, meu bem?
Gwendolen estendeu as mãos sobre as cartas, como se quisesse aquecer-se sobre um fogo. Os dedos mindinhos de ambas as mãos estremeceram.
– Não sei. Elas dão a sensação de serem importantes, especialmente a primeira e a última. Muito importantes.
– Quem é Crestomanci? – Gato perguntou. Era um nome difícil de pronunciar. Ele fez isso por partes, tentando lembrarse do modo como a Sra. Sharp o dissera: CRES-TO-MAN-CI.
– É assim que se pronuncia? – quis saber.
– Sim, é isso mesmo, e não interessa quem ele é, meu bem – respondeu a Sra. Sharp. – E importante é uma palavra fraca para isso, queridinho. Gostaria de saber o que seu pai disse. Alguma coisa que poucas pessoas ousariam dizer, pelo que parece. E veja o que ganhou em troca! Três assinaturas genuínas! O Sr. Nostrum daria os olhos da cara por elas, queridinha. Ah, você tem sorte! Ele vai ensinar-lhe em troca disto, ora se vai! Qualquer necromante deste país faria isso. Cheia de entusiasmo, a Sra. Sharp pôs-se a recolocar as coisas dentro da caixa.
– Que é que temos aqui? – perguntou de repente.
Uma carteira de fósforos de papel caíra do meio do maço das cartas de negócios. A Sra. Sharp abriu-a cuidadosamente. Continha menos do que a metade dos frágeis fósforos de papelão. E três deles haviam queimado sem terem sido arrancados da carteira. O terceiro estava tão queimado que Gato imaginou que ele tivesse incendiado os outros dois.
– Hum… – fez a Sra. Sharp. – Acho que é melhor você guardar isto, meu bem.
Passou a carteira de fósforos para Gwendolen, que a colocou no bolso do vestido junto com os brincos.
– E que tal você ficar com isto, meu querido? – a Sra. Sharp disse a Gato, lembrando-se de que ele também tinha direito.
Deu-lhe o raminho de urzes brancas. Gato usou-o na lapela até ele desmanchar-se.
Morando com a Sra. Sharp, Gwendolen aparentava florescer. Os cabelos pareciam de um ouro mais brilhante, os olhos, de um azul mais profundo, e todo o seu jeito era feliz e confiante. Talvez Gato tenha se encolhido um pouco para dar-lhe espaço – ele não sabia. Tampouco ele estava infeliz; a Sra. Sharp era tão boa para ele quanto para Gwendolen. Os Conselheiros Municipais e suas esposas vinham visitá-lo várias vezes por semana; entravam na sala de visitas e lhe faziam festinhas na cabeça.
Gwendolen e ele foram mandados para a melhor escola de Wolvercote. Gato era feliz ali. A única coisa ruim era que ele era canhoto, e os professores sempre o castigavam se o pegavam escrevendo com a mão esquerda. Mas haviam agido assim em todas as escolas que Gato já freqüentara, e ele estava acostumado com isso. Tinha dúzias de amigos; ainda assim, bem no fundo se sentia perdido e solitário. De modo que se agarrava a Gwendolen, pois ela era a única família que ele tinha.
Gwendolen muitas vezes mostrava-se impaciente com ele, embora em geral estivesse ocupada demais e feliz demais para ficar irritada de verdade. Me deixe em paz, Gato, dizia, senão…. Ela então guardava seus cadernos num estojo de música e corria para a casa vizinha, para mais uma aula com o Sr. Nostrum.
O Sr. Nostrum ficou contentíssimo em dar aulas a Gwendolen em troca das cartas. A Sra. Sharp deu-lhe uma de cada vez, no final de cada série, começando pela última.
– Não vou dar todas de uma vez, ele pode ficar cobiçoso – explicou. – E vamos deixar a melhor por último.
O progresso de Gwendolen era excelente. Ela era, na realidade, uma bruxa tão promissora que não fez as provas da primeira série, passando logo para a segunda. Logo depois do Natal, cursou a terceira e a quarta séries juntas, e no verão seguinte estava iniciando Magia Avançada. O Sr. Nostrum considerava-a a sua aluna predileta – como informou à Sra. Sharp por cima do muro – e Gwendolen sempre voltava das aulas dele feliz, dourada e cintilante.
Ela ia à casa do Sr. Nostrum duas noites por semana, com seu estojo de magia debaixo do braço, como as outras pessoas vão para uma aula de música. Aliás, foram aulas de música que a Sra.Sharp declarou que ela estava tendo, nos registros que mantinha para o Conselho Municipal. Como o Sr. Nostrum não era pago, a não ser com as cartas, Gato achava isso uma desonestidade daSra. Sharp.
– Tenho que guardar alguma coisa para a minha velhice – disse-lhe a Sra. Sharp em tom irritado. – Não sobra grande coisa para mim do dinheiro de manter vocês, não é mesmo? E não posso confiar que a sua irmã vá se lembrar de mim quando estiver crescida e famosa. Ah, meu bem, não tenho essa ilusão!
Gato sabia que a Sra. Sharp provavelmente tinha razão. E sentia um pouco de pena dela, pois certamente fora muito bondosa, e ele sabia, a essa altura, que ela própria não era uma bruxa muito eficiente. Na realidade, sendo uma Bruxa Registrada, conforme proclamava o cartaz na janela da sala de visitas da Sra. Sharp, ela pertencia à categoria mais elementar. As pessoas só vinham procurar feitiços com a Sra. Sharp quando não tinham dinheiro para procurar as três Bruxas Autorizadas que moravam na mesma rua.
A Sra. Sharp aumentava seus rendimentos atuando como agente para o Sr. Larkins da loja de quinquilharias. Fornecia-lhe Mercadorias Exóticas – isto é, os ingredientes mais estranhos necessários aos feitiços – de lugares tão distantes quanto Londres. Tinha muito orgulho de seus contatos em Londres. Costumava dizer a Gwendolen:
– Ah, sim, tenho contatos, se tenho. Conheço quem consegue me arranjar uma boa quantidade de sangue de dragão sempre que eu quiser, por mais ilegal que seja. Enquanto você me tiver, não passará necessidade.
Apesar de não ter ilusões quanto a Gwendolen, a Sra. Sharp talvez acalentasse mesmo a esperança de tornar-se sua empresária quando a menina crescesse. Gato imaginava isso. E sentia pena da Sra. Sharp: ele tinha certeza de que Gwendolen ia descartar-se dela como de um casaco velho, quando ficasse famosa – pois, assim como a Sra. Sharp, Gato não tinha dúvida alguma de que Gwendolen ficaria famosa. Portanto disse:
– Mas eu estarei aqui para cuidar da senhora. Essa idéia não lhe agradava muito, mas ele achava que devia dizer isso.
A Sra. Sharp ficou emocionada e grata. Como recompensa, providenciou para que Gato tivesse aulas de música de verdade.
– Então esse Prefeito não vai ter do que reclamar – ela disse.
Acreditava em matar dois coelhos com uma só cajadada. Gato começou a aprender a tocar violino. Achava que estava fazendo grande progresso. Estudava com dedicação e nunca conseguiu entender por que as pessoas que tinham se mudado para o andar de cima batiam no chão quando ele começava a tocar.
A Sra. Sharp, que tinha um péssimo ouvido para música, ficava a assentir com a cabeça e sorrir quando ele tocava, e o incentivava muito.
Certa noite, ele estava ensaiando violino quando Gwendolen entrou de supetão e gritou-lhe um feitiço em tom esganiçado. Gato descobriu-se, para sua consternação, segurando pelo rabo um gato enorme e listrado. A cabeça do gato estava aninhada sob o queixo do garoto, que roçava as costas do animal com o arco do violino.
Deixou-o cair apressadamente. Mesmo assim o gato mordeu-lhe o pescoço sob o queixo e deu-lhe arranhões dolorosos.
– Por que fez isto? – perguntou.
O gato tinha o corpo arqueado e o encarava com raiva.
– Porque o barulho que você fazia era exatamente igual ao queele faz! – Gwendolen declarou. – Eu não conseguiria agüentar nem mais um instante. Venha cá, gatinho!
O gato também não gostou de Gwendolen e arranhou a mão que ela lhe estendeu. Gwendolen deu-lhe um tapa. O gato correu, perseguido por Gato, que gritava:
– Peguem esse gato! É o meu violino, segurem!
Mas o gato escapou, e aquele foi o fim das aulas de violino. A Sra. Sharp ficou impressionada com aquela demonstração do talento de Gwendolen; subiu numa cadeira no quintal e contou tudo ao Sr. Nostrum por cima do muro. Dali a história espalhou-se para cada bruxa e cada necromante dos arredores.
Aquela vizinhança era cheia de bruxaria, pois as pessoas do mesmo ramo tendem a agrupar-se. Se Gato saísse pela porta da frente da casa da Sra. Sharp na Rua Sabá e virasse para a direita, passaria por vários cartazes: além daquele das três “Bruxas Autorizadas”, havia dois de “Faz-se Magia Negra”, um de “Profeta”, um de “Adivinho” e um de “Bruxo Às Suas Ordens”. Se virasse para a esquerda, passaria por um cartaz de “Sr. HENRY NOSTRUM, A.R.C.M. – Aulas de Necromancia”, por um de “Cartomante”, um de “Bruxaria para Todos os Fins”, um de “Clarividente” e, finalmente,pela loja do Sr. Larkins. Nessa rua, e em várias ruas ao redor, o ar era impregnado pelo odor da magia em ação.
Todas aquelas pessoas tinham um interesse profundo e amigável em Gwendolen. A história do gato impressionou-as imensamente. Fizeram da criatura um animal de estimação que, naturalmente, se chamava Rabeca. Embora o gato continuasse mal-humorado, ardiloso e hostil, nunca passou sem comida.
E Gwendolen tornou-se para a vizinhança um animalzinho de maior estimação ainda. O Sr. Larkins dava-lhe presentes; o Bruxo Às Suas Ordens, que era um rapaz musculoso e sempre de barba por fazer, surgia à porta da sua casa cada vez que via Gwendolen passar, e lhe deu de presente umolho-de-boi. As diversas bruxas estavam sempre buscando feitiços simples para ela fazer.
Gwendolen zombava daqueles feitiços:
– Eles pensam que sou um bebê ou coisa parecida? Já passei quilômetros dessa fase – dizia, descartando o feitiço mais recente.
A Sra. Sharp, que aceitava com prazer qualquer ajuda à sua bruxaria, em geral recolhia cuidadosamente o feitiço e o escondia. Porém uma ou duas vezes Gato encontrou um ou outro feitiço jogado por lá. Então não conseguia resistir, e o experimentava.
Gostaria de ter só um pouco dos poderes de Gwendolen. Acalentava sempre a esperança de que o seu dom fosse daqueles que tardavam em se desenvolver, e de que algum dia um feitiço seu funcionasse. Mas nunca funcionaram – nem mesmo aquele que lhe agradava particularmente, usado paratransformar botões de cobre em ouro.
Os diversos cartomantes também davam presentes a Gwendolen. Ela ganhou uma velha bola de cristal do Adivinho e um baralho de cartas do Profeta. O cartomante leu o seu futuro; Gwendolen saiu de lá exultante.
– Vou ficar famosa! Ele disse que eu poderia governar o mundo, se agir da maneira certa! – contou a Gato.
Embora Gato não duvidasse de que Gwendolen ficaria famosa, não conseguia entender como ela poderia governar o mundo, e lhe disse isso.
– Mesmo que se casasse com o Rei, você só governaria um país – ele objetou. – E o Príncipe de Gales casou-se no ano passado.
– Existem outras maneiras de governar além dessa, seu burro! – Gwendolen retrucou. – Para começar, o Sr. Nostrum tem um monte de idéias para mim. Bom, é claro que existem algumas dificuldades. Há uma mudança para pior que eu preciso ultrapassar, e um Desconhecido Moreno dominante. Mas quando ele me disse que eu poderia governar o mundo, meus dedos todostremeram, por isso sei que é verdade!
Parecia não haver limite para a exultante confiança de Gwendolen. No dia seguinte, a Srta. Larkins, Clarividente, convidou Gato para ir à sua casa e ofereceu-se para ler a sorte dele também.
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