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O diretor Guel Arraes sempre teve uma carreira sólida na televisão, ajudando a desenvolver uma linguagem narrativa própria das telinhas tupiniquins. Ele já dirigiu TV Pirata, Armação Ilimitada e a deliciosa novela Guerra dos Sexos. Depois de duas adaptações de mini-séries para o cinema (O Auto da Compadecida e Caramuru), finalmente Arraes tem a sua chance de fazer um longa-metragem original para as telonas. E o resultado é bem interessante, como podemos conferir no divertidíssimo Lisbela e o Prisioneiro, estrelado pelo não menos divertido (e talentoso) Selton Mello (não por acaso, também estrela de ‘O Auto…’ e ‘Caramuru’).
Baseado numa peça de Osmar Lins (e dirigida pelo próprio Arraes), o filme chegou aos cinemas com ares de produção ‘blockbuster’ norte-americana: testes de audiência, assessoria de imprensa funcionando à toda, trilha sonora bem cuidada e lançada em CD junto com o filme, inflexíveis datas de estréia. E não é à toa, porque a obra merece. Trata-se de uma história com personagens cativantes, interpretações impecáveis, diálogos ágeis, texto inteligente, edição criativa e uma direção de arte bem apurada. O que mais a gente quer? Ah, sim: boas doses daquele humor variando do escrachado ao sutil que só os brasileiros sabem fazer… Voilá: aí está um filme para ver com toda a família. Um típico ‘blockbuster’ nacional. E dá-lhe pipoca!
Brincando com metalinguagem (e com o próprio formato do filme), Arraes conta a história da sonhadora Lisbela (Débora Falabella), uma típica garota de família do interior do Pernambuco que, na década de 60, é completamente viciada em cinema. Naqueles filmes em preto-e-branco, exibidos nas salas de cinema em capítulos semanais, coisa que nossos pais conhecem muito bem. Graças a este vício, ela sonha com um amor impossível, improvável, idílico, daqueles que só vemos nos filmes românticos… por mais que esteja de casamento marcado com o mauricinho Douglas (Bruno Garcia), um pretenso carioca que só pensa em pentear os cabelos e aproveitar os prazeres da lua-de-mel antes do casamento…
A vida de Lisbela muda quando ela conhece o sedutor Leléu (Selton Mello), um cafajeste mambembe que vaga pelas cidades interioranas inventando personagens, performances e artimanhas para faturar algum dinheiro… e as mulheres alheias. Numa destas paradas, ele acaba se envolvendo com a fogosa Inaura (Virginia Cavendish)… ganhando o ódio de seu marido, o matador de aluguel Frederico Evandro (Marco Nanini, excepcional). Quando Leléu e Lisbela se apaixonam, é exatamente como ela sonhou: afinal, a dupla vai ter que enfrentar os ciúmes de Douglas e Inaura, a fúria sanguinária de Evandro e ainda a oposição do pai da donzela, o Tenente Guedes (o hilário André Mattos, o Dom João VI da série Quintos dos Infernos).
Para completar o elenco estelar, só mesmo a presença do Cabo Citonho, vivido pelo ator nordestino Tadeu Mello. É impressionante a graça e desenvoltura com a qual ele trata a câmera… Fico me perguntando o que diabos este sujeito está fazendo numa bobagem como A Turma do Didi.
Conforme vai desenrolando as venturas e desventuras de Lisbela e seu amado Leléu, Arraes brinca com os clichês dos romances do cinema americano, estabelece comparações com a TV, critica aqueles que só gostam do cinema ianque em detretimento do produto nacional… E é nestas pequenas pérolas que está o maior destaque da película, todas as vezes em que Lisbela coloca os pés no cinema.
A trilha traz canções que misturam modernidade e o clássico elemento cultural nordestino, apoiando-se bastante no que alguns gostam de chamar de ‘brega’ ou talvez ‘cafona’. Bobagem: são músicas que formam o perfeito retrato do brasileiro típico – que não é, nem de longe, o intelectual fã de jazz e rock alternativo que acha que sabe de tudo só porque tem uma coluna no jornal. Caetano Veloso, de quem não sou o que pode se chamar de fã, interpreta a balada dramática e sangrenta (como diria o Wander Wildner) Você Não Me Ensinou a Te Esquecer, do desaparecido Fernando Mendes. Elza Soares dá tudo de si e solta a voz poderosa na releitura do forró Espumas ao Vento. E Zé Ramalho convida o Sepultura para adicionar seu heavy metal (e não hardcore, como afirmou um certo crítico da Folha) à A Dança das Borboletas, composição sua ao lado de Alceu Valença. De resto, temos ainda os Los Hermanos (‘Lisbela’) e Lirinha, vocalista do Cordel do Fogo Encantado, que canta O Amor é Filme, música que encerra a película.
:: AH, SIM…
…quando entrava no cinema, ouvi um casal comentando, em frente do cartaz de ‘Lisbela’: “Putz, filme nacional? Só se for legal como o ‘Cidade de Deus’. Aquilo sim é filme no padrão americano”, disse o namorado para a sua interessada parceira. E então me lembrei que, até hoje, não tinha comentado sobre o assunto aqui n’A ARCA.
Fato: Cidade de Deus é um filme interessantíssimo… mas eu dou nota 7,5. Acima da média… mas não tem nada de novo. “Uau, a edição é maravilhosa e a fotografia é de cair o queixo!”. Verdade. Mas, em termos de linguagem, não oferece nada de novo. Eu já vi uma centena de filmes americanos com este tipo de técnica. Basta lembrar de Guy Ritchie ou Quentin Tarantino. O próprio trailer de Cidade de Deus é, sem nenhuma vergonha, baseado em Snatch.
Nada disso desmerece o filme. Mas sim as críticas que foram feitas a ele. “Ah, é um marco na renovação do cinema nacional”. Não, não é. É um filme bom… e é isso aí. Todo o ‘hype’ da mídia nacional é pura patriotada. Pra mim, ‘Cidade de Deus’ é um filme que faz a estética da violência para americano ver, para conquistar o mercado internacional. Não pode ser chamado de renovação do cinema nacional porque não ‘renova’ nada, só recicla conceitos do cinema americano.
Tá na hora dos cineastas brasileiros desenvolverem sua própria linguagem. Gostem ou não do cara, o espanhol Pedro Almodóvar tem seu próprio jeito de contar uma história, distinto e facilmente reconhecível como obra de sua autoria. Assim como o Kubrick também tinha o seu. Assim como Spielberg, Coppola ou Scorcese. É isso que os brasileiros têm que buscar. A nossa TV tem sua própria linguagem, diferente do que se faz no mundo inteiro. Tanto é que nossas novelas e séries são exportadas para diferentes lugares do globo. A edição, os diálogos, a narrativa, tudo é muito próprio. Acho que Lisbela e o Prisioneiro, como primeiro produto de Arraes exclusivamente para o cinema, está no caminho certo para descobrir o ‘jeitinho brasileiro’ de fazer cinema.
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