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Não creia que o título do mais novo filme de Spike Jonze, a mente pensante por trás do inventivo Quero Ser John Malkovich, é auto-explicativo. Ele tanto diz respeito ao processo de adaptação de um livro para se tornar um roteiro de cinema quanto pode remeter ao processo de adaptação pelo qual todos os seres vivos podem passar em busca da sobrevivência no processo de evolução, de acordo com a teoria de Charles Darwin. Achou confuso? Você não viu nada…
Em Adaptação, que sem dúvida nenhuma disputa o título de melhor filme do ano, somos apresentados ao complexado Charles Kauffman (Nicolas Cage), roteirista que trabalha para alguns dos maiores estúdios de Hollywood. Muito elogiado por último trabalho em Quero Ser John Malkovich (a primeira de muitas metalinguagens que surgem por toda a história), ele é contratado para escrever o roteiro da adaptação do livro O Ladrão de Orquídeas para as telonas. No entanto, Kauffman está no auge de seus complexos de inferioridade e começa a ter uma série de dificuldades no meio do caminho. Para complicar as coisas, seu irmão gêmeo Donald resolve tornar-se roteirista também. Mas, ao contrário de Charlie, ele se mostra um típico roteirista de ‘blockbusters’, apelando para os mais básicos clichês e escrevendo o tipo de filme que o mercado pede: perseguições policiais, muitas explosões e tiroteios… E o pior: a carreira de Donald começa a deslanchar, ao mesmo tempo em que ele começa a namorar uma bela maquiadora de cinema. É o suficiente para mandar a auto-estima de Charlie para o buraco e tornar a adaptação do roteiro ainda mais complicada…
Escrito por Susan Orlean (Meryl Streep), O Ladrão de Orquídeas trata da história do cativante John Laroche (Chris Cooper), um naturalista que é apanhado tentando roubar uma enorme variedade de plantas diretamente de uma reserva ambiental do Governo – entra elas, está a misteriosa ‘orquídea-fantasma’, uma das espécies mais raras do mundo.
O mais interessante de Adaptação é justamente a narrativa, que alterna, muitas vezes sem avisar, da história de Kauffman direto para o passado, mostrando o processo pelo qual Orlean passou para escrever o livro e sua estranha relação com Laroche. Isso sem falar nos devaneios e desvarios de Kauffman, que nos remetem, por exemplo, à pré-história ou à Inglaterra vitoriana de Charles Darwin. Na verdade, ‘Adaptação’ fala o tempo todo de seu próprio roteiro, brincando consigo mesmo e voltando ao começo mais de uma vez justamente porque se trata de uma história mais ou menos real: o roteirista do filme (que REALMENTE se chama Charles Kauffman) estava tendo uma série de problemas para adaptar um livro para o cinema e acabou criando uma história sobre como foi o seu próprio processo tortuoso. E para esclarecer qualquer dúvida: embora ‘Adaptação’ concorra ao Oscar de melhor roteiro adaptado pelo trabalho de Charles e Donald Kauffman, este irmão gêmeo na verdade não existe! 🙂
Metalinguagem em cima de metalinguagem, vamos assistir a um filme sobre um roteirista escrevendo aquele filme que estamos assistindo, o que gera situações divertidíssimas e pra lá de insólitas. No entanto, a trama salta do humor para o drama mais intenso com imensa facilidade e coerência, gerando uma espécie de montanha russa emocional poderosíssima.
As atuações
Sim, elas são o ponto forte da película. Meryl Streep está ótima, com uma profundidade no olhar que muitas vezes dispensa qualquer fala. Já a interpretação de Nicolas Cage é indiscutivelmente uma das melhores de sua carreira. Afinal, os dois irmãos gêmeos são notoriamente diferentes em cada detalhe, da forma de respirar aos trejeitos na hora de arrumar o cabelo.
Mas o meu destaque vai sem dúvida para Chris Cooper, merecidamente indicado ao Oscar de melhor ator coadjuvante. O seu John Laroche é um personagem muito bem construído, totalmente tri-dimensional e apaixonante, vivido de maneira soberba e intensa.
Embora rápida e rasteira, vale menção a sinistra aparição do nosso bom e velho Brian Cox como o professor de roteiro Robert McKee. Pra quem não se lembra, ele é o grande vilão do segundo filme dos X-Men.
Em resumo: um filme ideal para quem está cansado das mesmas baboseiras que a indústria cinematográfica americana nos faz engolir todo ano – tipo aquelas que um certo Donald Kauffman escreveria, sabe? 🙂
Adaptation. EUA/2002. Dir. Spike Jonze. Com Nicolas Cage, Meryl Streep, Chris Cooper, Jane Adams, Brian Cox
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